* 18. Há uma chama avulsa que se agita por entre os escombros da beleza. É uma forma de questionação como qualquer outra. É uma saudade de fogo. Lupa que se inclina sobre o infinito. Por isso, ofereço-te, não a rosa, votada à cinza, mas o frágil canto que dela sou capaz. Aceita se quiseres esta ausência, réplica espavorida com que esperamos despertar a mesma noite sem nome. No eco feliz do que não voltará a ser, reconhecemos uma espécie de alegria.
* 19. A árdua arte das palavras permite aprofundar o abismo. Não me ocorre muito mais. São apenas ficções que minam o retrato, que esburacam o relato, a sabotagem de todas as leis da identidade. Ardor impessoal com o qual não saberia viver. Escrevo para ti, não sei escrever para mais ninguém. Tendo naturalmente para a fantasia, para a efabulação dos factos mais concretos. Misturo tudo e dessa amálgama improvável nasce a mais objectiva impostura que me prende. Como explicar um tal sentimento de urgência? Aqui estão elas: pegadas envenenadas, assombro por enterrar.
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Ricardo Gil Soeiro. Tratado da mão. Vila Nova de Famalicão: Edições Húmus, 2021, pp 22-23.
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