quinta-feira, 31 de janeiro de 2019



Os ventos


Aves sem asas
viajam invisíveis
selvagens ou mansos.
Namoram nuvens
nômades.
Farejam faróis
afastados.
Alcançam torres
perdidas.
Varrem cidades
esquecidas.
Franzem águas
de tanques.
Levantam
ondas e dunas.
Assobiam
sustenidos.
Alvoroçam copas
hastes e relvas.
Carregam chuvas
derrubam frutas.
Balançam bandeiras
nos mastros e
lençóis nos varais.
Abrem portas e janelas.
Arrancam chapéus
e arrrepiam cabelos
até que se somem
no sovaco da terra
calados serenos.

Resta na epiderme
a lembrança
do sopro leve.


   Cabral, Astrid. Íntima fuligem. Manaus: Editora Valer, 2017, pp 171-172.
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quarta-feira, 30 de janeiro de 2019


                                                                 Hierarquias


Em vida sua preocupação mor
foi a de classificar as pessoas
tidas por gente reles ou ilustre.
Havia as periféricas, as colunáveis.
as apagadas e as que cintilavam,
as poderosas e as pobres coitadas,
as sem eira nem beira e as abonadas.
Gente que mandava e que desmandava
ou obedecia feito pau-mandado
os zés-ninguéns e os importantões,
os peões de manobra e seus patrões,
chefes e secretárias submissas,
políticos ministros moto boys,
soldado raso major general,
pároco sacristão cardeal primaz,
escreventes escribas e doutores,
os anônimos e as celebridades.

Agora, ocupante de outro plano
classificará em escala celeste
serafins querubins arcanjos e anjos?
Quais os eleitos, quais os condenados?
Ou se aborrecerá entre imortais
todos democraticamente iguais?
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       Cabral, Astrid. Íntima fuligem. Manaus: Editora Valer, 2017, p 130.
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terça-feira, 29 de janeiro de 2019


Bicho raro


Metade de mim contigo
mora, a outra, longes praias
e estranhas correntes singra.

Teu rígido siso toma
por desamor e descaso
se do teu lado me ausento.

Sê tolerante e olha bem:
ora piso em pó de ruas
ora em areias da lua.

Aceita o que desnorteia:
alma de centauro tenho.
Sou criatura sereia.

  Cabral, Astrid. Íntima fuligem. Manaus: Editora Valer, 2017, p 126.
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segunda-feira, 28 de janeiro de 2019


Prémio Internacional de Poesia António Salvado - Cidade de Castelo Branco
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(Ver aqui:  https://24.sapo.pt/vida/artigos/portuguesa-e-mexicano-vencem-premio-internacional-de-poesia-antonio-salvado )
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O Júri do Prémio acima referido constituído por: Alfredo Perez Alencart (Presidente do Júri), Fernando Paulouro das Neves, Rita Taborda Duarte, Victor Oliveira Mateus, Paulo Samuel, José Pires, António Candido Franco, Maria Barata, Enrique Móran, António Pereira e Manuel Nunes decidiu atribuir, por unanimidade o dito Prémio: à portuguesa Maria João Pessoa pelo seu livro "Emoções Fora da Lei" e ao mexicano Gerardo Rodriguez pela obra "Poemas de Almanaque para entreter".
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quinta-feira, 24 de janeiro de 2019

AVISO:
o poema que se segue inclui palavrões.
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Nota:
. Pero Garcia Burgalês é um poeta trovador nascido em Burgos (Espanha), frequentou a corte de Afonso X de Castela e Leão e pensa-se que tenha frequentado a corte de Afonso III de Portugal.
Às cantigas de amor trouxe grandes inovações temáticas, pelo que é tido como um dos mais importantes poetas da escola galego-portuguesa. As suas sátiras são notáveis, quer pelas originalidades literárias, quer pela força com que critica os objetos ou as pessoas visados. A Cantiga aqui transcrita segue a grafia atualizada.
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Maria Negra é bem desventurada.
Porque anda tantas piças a comprar
se, nas suas mãos, de tanto as usar,
elas lhe morrem, triste malfadada?
A um caralho grande que comprou,
ontem, ao serão, logo o esfolou
e tem outra piça já amormada.

Ei-la à pobreza, de novo, voltada,
por comprar piças. Vede a desventura:
pissa que ela compre, pouco lhe dura,
depois que a mete na sua pousada.
Acontece-lhe ela morrer, então,
ou de tumores ou de torcilhão,
ou, portanto uso, ficar estragada.

É muita desventura, desgraçada
tantas piças por ano assim perder.
Compra-as caras e vão-se desfazer.
A culpa disso é da casa molhada
onde ela as mete, uma estrebaria.
Quando lhe morrem, a velha sandia
por piças berra, na terra deitada.
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 Burgalês, Pero Garcia. Cantigas obscenas, de escárnio e maldizer. Lisboa: notícias editorial, 2004, pp 104-105 (Coordenação de Orlando Neves).
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Na sequência do trabalho que a Profª. Dra. Eliane Robert Moraes da Universidade Federal de São Paulo vem desenvolvendo em torno da literatura erótica e obscena, este blogue decidiu abrir-se também a essa variante literária, aliás, riquíssima em Portugal e no Brasil. Neste estilo de literatura muitas variáveis podem ser detetadas: linguísticas, de costumes, de valores, de crítica social e política, etc., Assim, fica aqui um AVISO: sempre que algum desses textos for postado, sê-lo-á com o respetivo pré-aviso para que os coraçõezinhos mais sensíveis não saiam molestados. Começar-se-á por um conto meu: "O atrasadinho", que publiquei em 2006 na então Revista Minguante. É uma comédia de costumes e sobre a ganância que ainda hoje me faz sorrir. 

O Atrasadinho"
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Tudo por causa do raio dos olhos, parados, quase mortos. E eu ainda os abro mais, como se não visse. Autismo, disseram os médicos. O gajo é mas é atrasado! Decretaram os meus irmãos do alto da sua experiência. E assim fiquei: quase inexistente. O meu pai aproveitou-se: punha tudo em meu nome e olhava de soslaio para os meus irmãos. Malandros!, rosnava. Olha, filho, está tudo aqui! E apontava para uma caixa azul enterrada no quintal: os extractos, as aplicações. O pai assim fica descansado, acrescentava, como és atrasadinho. O meu irmão mais velho pirou-se cedo: comeu a filha do Hermenegildo e este apareceu aí com uma de canos serrados... Foi uma tourada aqui na rua! Pronto, casou! O mais novo atirou-se ao marido da Isilda do 2º Dto., um que era polícia, daqueles que dão porrada na malta. O maricão ainda apareceu aí com um olho negro. Mas a coisa deve ter mudado, porque depois encontrei-lhe uma coleira na cama. É do cão, disse o sacana. Qual cão?! Pensa que sou atrasadinho ou quê? Nós nem temos cão. E as algemas de que o polícia se esqueceu cá? Se calhar também são do cão. Quando o meu pai marou apareceram todos. Olha lá, perguntava-me o mais velho, sabes onde está a papelada? Eu abria os meus olhos azuis e babava-me. Não vês que é atrasadinho? Impunha-se a minha cunhada. O cabrão do mais novo é mais vivaço: como não me pôde roubar a mim, roubou o marido à Isilda. Essa puta agora não me larga: sabes p'ra onde é que eles foram? Eu abro os meus olhos azuis e deito a língua de fora. Ele é atrasadinho! Insiste a minha cunhada. Qual atrasadinho, qual merda, ele sabe é mais do que nós todos juntos!... Saíram agora as duas. Foram ao Super. Bem, também vou! As transferências já estão feitas e a casa de Genebra à espera. O avião é às oito. Não me posso atrasar! É que isto de ser sempre atrasadinho também cansa.

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terça-feira, 22 de janeiro de 2019


Poemas do livro Aquilo que não tem nome (Coisas de Ler, 2018) publicados no diário espanhol Crear em Salamanca . A tradução é da autoria de André Domingues e as fotos são de Jacqueline Alencart e de José Amador Martín.
Aqui:  http://www.crearensalamanca.com/poemas-del-portugues-victor-oliveira-mateus-traducidos-por-andre-domingues/
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 Saiu já o Nº 6 da Rua L - Revista da Universidade de Aveiro , que inclui dois poemas meus.
Aqui:  http://revistas.ua.pt/index.php/rual2/article/view/11849/9737
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domingo, 13 de janeiro de 2019

Dia 13 de fevereiro, pelas 17:00H,  na sala 5.2. da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, realizar-se-ão as eleições para o PEN Clube Português. A única lista que se apresentou ao ato é composta pelos seguintes: académicos, ensaístas, poetas e romancistas:
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LISTA A Lista concorrente às eleições para os órgãos associativos do PEN Clube Português em 2019, de acordo com o Artigo 5º do Regulamento Eleitoral 
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Delegado da Lista: Manuel Amador Frias Martins - Manuel Frias Martins 
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Mesa da Assembleia Geral: Ernesto José Rodrigues - Ernesto Rodrigues (Presidente) 
Nuno Filipe Camarneiro Mendes - Nuno Camarneiro (1º Secretário) 
Fernando Manuel Venâncio - Fernando Venâncio (2º Secretário) 
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Direcção: Maria Teresa Martins Marques - Teresa Martins Marques (Presidente) 
José António Viale Moutinho - José Viale Moutinho (Vice-Presidente e Tesoureiro) 
Paulo José Miranda Correia - Paulo José Miranda (Secretário) 
Fernando José Branco Pinto do Amaral - Fernando Pinto do Amaral (Vogal) 
João Manuel Vilela Rasteiro - João Rasteiro (Vogal) 
Francisco de Assis Garrido Belard da Fonseca - Francisco Belard (suplente) 
Maria Inês Ribeiro Lourenço da Fonseca - Inês Lourenço (Suplente) 
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Conselho Fiscal: Maria Cristina Nunes da Gama Carvalho Meira da Cunha - Cristina Carvalho (Presidente) 
Rui Miguel Mesquita Fernandes da Silva- Rui Miguel Mesquita (Vogal) 
Carlos Manuel Nogueira Fino - Carlos Nogueira Fino (Vogal) 
Ana Paula Coutinho Mendes - Ana Paula Coutinho (Suplente) 
Victor Manuel de Oliveira Mateus - Victor Oliveira Mateus (Suplente)
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sexta-feira, 11 de janeiro de 2019



  oh los ojos tuyos
  fulgurantes ojos


 Pizarnik, Alejandra. Poesía Completa (1955-1972). Barcelona: Lumen, 2018, p 389.
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                                      En honor de una pérdida
 

   La para siempre seguridad de estar de más en el lugar en donde los otros respiran. De mí debo decir que estoy impaciente porque se me dé un desenlace menos trágico que el silencio. Feroz alegria cuando encuentro una imagen que me alude. Desde mi respiración desoladora yo digo: que haya lenguaje en donde tiene que haber silencio.

   Alguien no se enuncia. Alguien no puede asistirse. Y tú no quisiste reconocerme cuando te dije lo que había en mí que eras tú. Ha tornado el viejo terror: haber hablado nada con nadie.

   El dorado día no es para mí. Penumbra del cuerpo fascinado por su deseo de morir. Si me amas lo sabré aunque no viva. Y yo me digo: Vende tu luz extraña, tu cerco inverosímil.

   Un fuego el el país no visto. Imágenes de candor cercano. Vende tu luz, el heroísmo de tus días futuros. La luz es un excedente de demasiadas cosas demasiado lejanas.

   En extrañas cosas moro.
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  Pizarnik, Alejandta. Poesía Completa (1955-1972). Barcelona: Lumen, 2018, p 345.
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sexta-feira, 4 de janeiro de 2019


viajera de corazón de pájaro negro
tuya es la soledad a medianoche
tuyos los animales sabios que pueblan tu sueño
en espera de la palabra antigua
tuyo el amor y su sonido a viento roto
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Pizarnik, Alejandra. Poesía completa (1955-1972). Barcelona: Lumen, 2018, p 147.
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quinta-feira, 3 de janeiro de 2019


           Fio de olhar

E aquele olhar seguiu-me.
Era curto o caminho, um corredor, uma porta.
Olhar curioso.
Vale uma parábola?
Uma mulher andando, um homem olhando.
Mais nada?
Mais nada.

E lá ficou o corredor e a porta.
E a mulher...
Sou eu.
Não valia mais que um olhar, embora curioso e
gracioso.
O homem...
Lá está, estará, interrogativo a olhar uma e outra
que passam.

Aquele olhar, aquele olhar!
Queria-o... como uma coisa que se agarra e que
se possui.
Mas para quê e como?
Fio de olhar, pura curiosidade.
Não é disparate lembrá-lo e tê-lo até notado?
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  Lisboa, Irene. Obra de Irene Lisboa Volume I, Poesia I: um dia e outro dia.../ outono havias de vir. Lisboa: Editorial Presença, 1991, p 304 (Organização: Profª Paula Morão).
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quarta-feira, 2 de janeiro de 2019


(...)
Comigo anda sempre,
torturando-me,
tão amargo sentimento
de desânimo
e de insuficiência...
que nem nos pobres,
ainda mais pobres que eu,
tenho conhecido!
De que se é pobre, afinal?

A impressão que sinto
é de que o mundo me foge...
de que tudo me falta...
paz, desejos, contentamento.
Erro desorientada!

Amei?
Não!
Não amei bastante,
não amei...
Dei os lábios
e dei o corpo,
furtivamente
e complacentemente,
sem prazer.
E quase fugi dos homens.
Por os aborrecer?
Não, pela dor violenta,
incomportável,
do seu desamor...
Os homens não amam!

Suponho
que toda esta desordem
em que me lançou
o meu desejo
e o meu retraimento,
este cansaço
ou enfado
dos bens ignorados
e repudiados,
me enfraqueceram...
me esgotaram...

E não é só isso!
É este sol...
É ver
e sentir correr a vida...
Este sol que teima em falar
de primaveras,
de anunciações!
(...)

Ó mais pensamentos!
Ó malévolo espírito
deste precoce dia
de verão!
Fechei as portas à luz...
mas cá dentro
ficou o calor,
ficou a quietação...
e neles boiando
este mísero sentido,
este desassossegado coração!
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Lisboa, Irene. Obras de Irene Lisboa, Volume I, Poesia I: um dia e outro dias.../ outono havias de vir. Lisboa: Editorial Presença, 1991, pp 144-146 ( Organização: Profª Paula Morão).
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terça-feira, 1 de janeiro de 2019



   Uma voz que mal se ouve. Um rumor. Sopro a
inscrever novo alfabeto nos confins da memória, na
rijeza de um banco onde todas as tardes o esperavas,
enquanto os restaurantes entaipavam portas e janelas e
um jasmineiro, igualmente sem esperanças, dobrava-se
para dentro da tua infância, para dentro dessa dor que
não sabias definir nem localizar. Uma dor que persiste
ainda e que continuas usando para aplacar os vestígios
de um absoluto que a terra te roubou. Ah, sempre essa
voz que mal se ouve! A que ficou, para além de uma
qualquer presença física, para além do rigor da própria
morte. E este abandono, esta serenidade à mistura com
uma luz difusa, que, sem que saibas como, acaba sempre
por te atirar para os trilhos do poema.
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  Mateus, Victor Oliveira. Aquilo que não tem nome. S/c.: Coisas de Ler Edições, 2018, p 18.
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