terça-feira, 28 de abril de 2020

pré-publicação.


          Ritual 


Puso la manzana en la mesa.
Una pequeña mesa
entre el revestimiento y un montón de libros.
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Muevo la persiana hasta abajo
para que el crepúsculo
se ajuste al silencio.
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Una lámpara de halógeno
se asoma por detrás
de los estantes
cerca de la ventana.


Desde el interior de la casa
ni el ruido de las tuberías
ni el estallido de los muebles.


Todo está en su lugar debido
y el mundo está bien hecho.
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Entonces me acuesto
en el sofá del fondo
y empiezo a pensar en ti
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  Mateus, Victor Oliveira Mateus. Aquello que no tiene nombre. Cidade do México, Abismos Editorial, 2020, p 32.33.
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Nota - não creio que venha a estar à venda em Portugal, mas pode ser encontrado em livrarias e plataformas online, como por exemplo a Wook.
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segunda-feira, 27 de abril de 2020



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  O Pássaro da Cabeça

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Sou o pássaro que canta

dentro da tua cabeça

que canta na tua garganta

canta onde lhe apeteça



Sou o pássaro que voa

dentro do teu coração

e do de qualquer pessoa

mesmo as que julgas que não

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Sou o pássaro da imaginação

que voa até na prisão

e canta por tudo e por nada

mesmo com a boca fechada

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E esta é a canção sem razão

que não serve para mais nada

senão para ser cantada

quando os amigos se vão

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E ficas de novo sozinho

na solidão que começa

apenas com o passarinho

dentro da tua cabeça.

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 Manuel António Pina

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terça-feira, 21 de abril de 2020


- E aí?
- Estou mais interessada no que ele tem a dizer sobre a Sicília do que no que ele sabe de pesquisas sobre câncer.
- Vocês vão se encontrar de novo?
- Acho que não. Passei três horas com ele hoje. É suficiente. Pamela pediu que eu o encontrasse, e foi o que fiz.
   Maud quer dispensá-lo. Porque tem medo dele. Tem medo porque está atraída. Síndrome clássica.
- Mas vocês dois estavam se divertindo esta noite.- Ah, ele é uma graça. Mas bebe... você precisava ter visto no almoço.
   Eu o vi no almoço!
   Maud parece muito indiferente e imprecisa, demonstrando um leve ar de cansaço, que é como evita os assuntos que não quer debater. O cansaço é sempre um bom disfarce para ela, como a histeria para Tamar. Ela está se esquivando, porque sabe que estou cutucando.
   Mas, jogada no banco, Maud parece mesmo cansada. A aparência ousada e perigosa de quando ela usa batom escuro desapareceu de seu rosto.
(...)
. Mas você gosta dele?
- Gosto.
Absorvo a resposta, reflito, não digo nada de início.
- Por um instante achei que havia alguma coisa?
- Entre nós dois, você quer dizer?
- Ah, não sei, talvez.
- Seria engraçado. Nunca passou pela minha cabeça, e posso garantir que também não passou pela dele.
- Por que engraçado?
- Por quê? Eu poderia pensar uma centena de motivos.
- Diga um.
- Quer dizer que você não percebeu? (...) Por que acha que ele perguntou se estamos apaixonados?- Indaga Maud.
- Por quê? Porque bebeu demais? Porque estava interessado em você?
- Não, querido. Em você.
Tento parecer perplexo. Mas sei que ela percebe.
- Então, alguma novidade?- pergunto.
- Nenhuma, acho.
   E de repente sei que estou dizendo alguma coisa, não só sobre Gabi, ou sobre os homens, mas sobre mim.
(...)
Não precisamos dizer mais nada, mas sei que neste momento, no táxi, de nós dois, fui eu, não ela, que atravessou para o outro lado.
- Vou perder você? - pergunta ela, então faz uma pausa, como quem se pergunta se eu não estou mais prestando atenção. - Porque não quero perder você.
   Não digo nada, Mas não sei se o que estou prestes a dizer é a verdade.
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 Aciman, André. Variações Enigma. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2018, pp 150-155.
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terça-feira, 14 de abril de 2020



   Ainda assim, minha vida começou ali e parou ali em um verão distante, naquela casa, que não existe mais, naquela década que passou tão rápido (...) Aonde quer que eu vá, todas as pessoas que vejo e desejo acabam sendo mensuradas pelo brilho da sua luz. Se minha vida fosse um barco, você seria aquele que subiu a bordo, ligou as luzes de navegação e nunca mais voltou. Tudo isso pode ser coisa da minha cabeça, e na minha cabeça ficará. Mas eu vivi e amei pela sua luz e mais nada. Em um ônibus, em uma rua movimentada, na sala de aula, em uma casa de shows lotada, uma ou duas vezes por ano, seja ou homem ou mulher, meu coração ainda acelera quando avisto alguém que parece você. Amamos apenas uma vez na vida, disse meu pai, às vezes cedo demais, às vezes tarde demos; as outras vezes são sempre um pouco ponderadas..
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  Aciman, André. Variações Enigma. Rio de Janeiro: Editora Intrínseca, 2018, pp 77-78.
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segunda-feira, 13 de abril de 2020


                           Retrato de rapaz


Sabes que os mapas só nos servem
quando já temos caminho
e que nada se descobre da procura,
mas ainda assim soubeste largar-te
ao mundo sem causa,
intuir as relíquias e forçar o esquecimento.
Ainda assim o acaso e a lonjura,
como aves que pousam juntas num terraço:
com hora marcada debicam as penas,
raspam a terra dos pequenos vasos
e lamentam o desejo de voar pela terra inteira.
Olhamos lábios e olhos
como se a beleza só florisse à luz da melancolia,
e é assim que me dedicas a pureza,
um resto sem préstimo,
a graça de um lastro cansado,
sem esforço.
É assim que me fazes depositário prematuro
da memória,
guardião dos velhos retratos
e de boa parte dos fantasmas
que te habitaram.
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 Madalena, Emanuel. Sob a forma do silêncio. Porto, Porto Editora, 2019, p 68.
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quarta-feira, 1 de abril de 2020


                                   Estampa


Duvido que saiba ser belo, forçar a estirpe
daqueles que exigem o olhar fixo,
a expressão intensa, os modos dramáticos,
intransigentes e ferozes,
e não fico bem nas fotografias.
Duvido que alguém me decida apenas pela repulsa,
muito menos pela adulação,
mas sou excessivo.
Partilhamos também os gestos
com que marcamos o entusiasmo das conversas,
mas nada mais.
Além de um esforço, nunca te vi abrir um sorriso
nem o adivinho no meu,
mas no de homens belos e intensos, pouco bondosos,
que suprimem a rigidez da força
enquanto inventam a textura do alívio.

No meu sorriso
trago a nudez ao rosto -
um punho fechado que não sei se abre
ou aperta com mais força.

Ensina-me a suplantar o grotesco
com o rasto da certeza.


 Madalena, Emanuel. Sob a forma do silêncio. Porto: Porto Editora, 2019, p 57.
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