terça-feira, 23 de abril de 2024


Para não se confundir a constituição republicana com a democrática (como costuma acontecer), é preciso observar-se o seguinte. As formas de um Estado (civitas) podem classificar-se segundo a diferença das pessoas que possuem o supremo poder do Estado, ou segundo o modo de governar o povo, seja quem for o seu governante; a primeira chama-se efectivamente a forma da soberania (forma imperis) e só há três formas possíveis, a saber, a soberania é possuída por um só, ou por alguns que entre si se religam, ou por todos conjuntamente, formando a sociedade civil (autocracia, aristocracia e democracia; o poder do príncipe, da nobreza e do povo). A segunda é a forma de governo (forma regiminis) e refere-se ao modo, baseado na constituição (no acto da vontade geral pela qual a massa se torna um povo), como o Estado faz uso da plenitude do seu poder: neste sentido, a constituição é ou republicana, ou despótica. O republicanismo é o princípio político da separação do poder executivo (governo)do legislativo; o despotismo é o princípio da execução arbitrária pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu, por conseguinte, a vontade pública é manejada pelo governante como sua vontade privada. – Das três formas de Estado, a democracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque funda um poder executivo em que todos decidem sobre e, em todo o caso, também contra um (que, por conseguinte, não dá o seu consentimento), portanto, todos, sem no entanto serem todos, decidem – o que é uma contradição da vontade geral consigo mesma e com a liberdade.

    Toda a forma de governo que não seja representativa é, em termos estritos, uma não-forma, porque o legislador não pode ser ao mesmo tempo executor da sua vontade numa e mesma pessoa (como também a universal da premissa maior num silogismo não pode ser ao mesmo tempo a subsunção do particular na premissa menor); e, embora as duas outras constituições políticas sejam sempre defeituosas porque proporcionam espaço a um tal modo de governo, é nelas ao menos possível que adoptem um modo de governo conforme com o espírito de um sistema representativo como, por exemplo, Frederico II ao dizer que ele era simplesmente o primeiro servidor do Estado, ao passo que a constituição democrática torna isso impossível porque todos querem ser o soberano. – Pode, pois, dizer-se: quanto mais reduzido é o pessoal do poder estatal (o número de dirigentes), tanto maior é a representação dos mesmos, tanto mais a constituição política se harmoniza com a possibilidade do republicanismo e pode esperar que, por fim, a ele chegue mediante reformas graduais. Por tal razão, chegar a esta constituição plenamente jurídica é mais difícil na aristocracia do que na monarquia e é impossível na democracia, a não ser mediante uma revolução violenta. Mas ao povo interessa mais, sem comparação, o modo de governo do que a forma de Estado (embora tenha também muita importância a sua maior ou menor adequação àquele fim). Ao modo de governo que deve ser conforme à ideia de direito pertence o sistema representativo, o único em que é possível um modo de governo republicano e sem o qual todo o governo é despótico e violento (seja qual for a sua constituição). – Nenhuma das denominadas repúblicas antigas conheceu este sistema e tiveram de dissolver-se efectivamente no despotismo, que, sob o poder supremo de um só, é ainda o mais suportável de todos os despotismos.

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Immanuel Kant. A Paz Perpétua (Segunda secção, Segunda Parte do Primeiro Artigo), in “A Paz Perpétua e Outros Opúsculos”. Lisboa: Edições 70, 2008, pp 140-142


 

domingo, 21 de abril de 2024

A Poesia de Antonio Merola foi publicava na Revista Oresteia no dia 2024/04/09.
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Che cosa faremo quando finiranno i soldi
se da qualche parte ci aspetta un ponte
o forse una madre a indovinare la forza
per cercare ancora una parte nel branco: ma fare la spesa
ogni giorno era la prima soluzione contro l’assurdo
come accettare di avere scoperto il mostro
sotto il letto a sorridere nero come una parte della famiglia.
Ci eravamo lasciati alle spalle una mancanza
tra le stanze vuote: ricordo ancora la povertà della casa
quando non avevamo ancora la corrente, ogni bolletta
costava una madre o una schiena e minorava l’esistenza
come matricolare la vita giorno per giorno
o subire la tragica necessità del cibo:
avevamo così poca fame
che cercavamo da mangiare nella spazzatura.

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O que faremos quando se nos acabar o dinheiro
e se em qualquer parte nos esperar uma ponte
ou talvez uma mãe a improvisar força
para procurar ainda um lugar no rebanho: mas fazer compras
todos os dias era a primeira solução contra o absurdo
tal como aceitar ter descoberto um monstro
debaixo da cama com um esquálido sorriso como parte da família.
Tínhamos deixado para trás uma ausência
entre os quartos vazios: lembro a pobreza da casa
quando ainda não tínhamos luz, e cada fatura
custava duro trabalho a uma mãe, e minava a existência
era como gravar a vida dia após dia
ou sofrer a trágica necessidade do sustento:
tínhamos tão pouca fome
que até procurávamos de comer no lixo.

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C’era ancora la paura del ritorno:
chiedevamo l’unicità a qualcosa che non poteva ripetersi
una volta sola come tremare gli agguati degli uomini,
piangere l’inverno. Ci avrebbero di nuovo tagliato
la corrente, ci avrebbero di nuovo portato via
la mobilia della casa, finché non saremo piegati alle cose
gettate: allora facevamo la doccia fredda
fino a tracimare il gelo. Non ho mai saputo
meglio la fine: vorrei pagare il mese con le parole,
mangiare la carta – invece ho una fame vera
di trascrivere l’arcobaleno in bianco e nero,
alterare il diluvio: voglio alberare il cielo di caducifoglie.

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Havia ainda o medo do regresso:
invocávamos a singularidade de algo que não podia repetir-se
uma única vez como estremecer as traições dos homens,
chorar o inverno. Teríamos de novo a eletricidade
cortada, levar-nos-iam de novo
a mobília da casa, até não nos debruçarmos mais sobre as coisas
retiradas, agora tomávamos duches frios
até o próprio gelo transbordar. Nunca mais soube
o fim: queria pagar o mês com as palavras,
comer a carta – em vez disso tenho uma fome tremenda
de reproduzir o arco-íris a preto e branco,
alterando o dilúvio: quero arborizar o céu com árvores de folhas caducas.

Traduções para português de Victor Oliveira Mateus

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Antonio Merola, Roma 1994, ha pubblicato il saggio F. Scott Fitzgerald e l’Italia (Ladolfi, 2018). allora ho acceso la luce (Taut, 2023) è la sua prima raccolta di poesie. È stato tradotto in inglese, spagnolo e francese su «Caravansary – Revista Internacional de Poesía» e su «The Dreaming Machine».

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terça-feira, 9 de abril de 2024


Retivemos da paisagem o intenso
mistério da luz por entre as casas,
como se em cada casa batesse
um coração a par de outros corações,
ansiosos de caminhos livres.
Agora pertencem ao silêncio
mais nítido as canções, os gritos,
as lágrimas, os detalhes de uma festa
acontecida num dia com tantos dias dentro,
numa cidade habitada pelo país inteiro.
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  Graça Pires. Era madrugada em Lisboa - Louvor a um dia com tantos dias dentro. Lisboa, Poética Grupo Editorial,  2024, p 35.

 

sábado, 6 de abril de 2024



são arredios os momentos em que te encontro
os cílios das portadas impedem-me o absinto da timidez.
curvo-me sobre o jasmineiro com a grafia de um cisne
a sombrear uma jazida de água. o pórtico da cameleira
inverte o ondular dos passos pela casa. encontro-te
no degelo do assoalho no pêndulo do lampadário
que se funde. encontro-te a sós com as mãos a tactearem
alguém que se ilumina por detrás do escuro.
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  Miguel Alexandre Marquez. Miserere. Coimbra: do lado esquerdo, 2023, p 30.
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sexta-feira, 5 de abril de 2024


        Angélique Ionatos:
        "Hélios, Hymne au Soleil"
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Uma irreprimível lágrima cai quando a guitarra é desafinada,
as mãos esvoaçam nas cordas - não há rosas calmas.
A voz graceja um fenómeno de sangue.
Há um naufrágio que temos que enfrentar estoicamente.
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Ninguém acredita que os sons são feitos de sonhos,
e que o nevoeiro tem cheiro.
Há algo antigo nesta voz, uma sombra cigana,
um silêncio que se estende à espera da morte.
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Pouso as mãos nas cordas flutuantes,
as metáforas sabem a sacrifício quando são aclamadas,
aproximam-se da infância, trazem um incêndio na algibeira.
A canção é uma nudez vacilante -
solstício, raiz, derradeira embriaguez a medir a voz.
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  Luís Aguiar. Alfarrabista. Fafe: Editora Labirinto, 2023, p 13 (Menção Honrosa no Prémio de Poesia Victor Oliveira Mateus II Edição - 2021).
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sexta-feira, 29 de março de 2024


                                       Naufrágio


Comecei a navegar pelas bordas da tua urgência, devagarinho e com terra à vista. Depois, fui percebendo que é sem pé que se alcança a ternura e que o fundo do mar e o fundo da terra são um e o mesmo lugar.

Parti, porque havia vento e havia uma saudade imensa de horizonte. 
Parti, porque me esqueci de tudo o que nunca aconteceu e ontem me parece agora, apenas um lugar amanhecido no fundo de um frasco de vidro baço.
Parti, porque o sol me redesenhou sempre e de todas as vezes que se encostou à curva da minha lonjura.

Desde ontem que navego e não vejo senão horizonte. Um mar que me serpenteia entre os meus anseios e ninguém... E o espanto atravessado na crista de cada uma das ondas que procuram um lugar.
Desde ontem que navego e não sei se algum dia irei aportar.
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  Filipa Vera Jardim. Latitude. Fafe: Editora Labirinto, 2023, p 38.
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domingo, 24 de março de 2024

Este longuíssimo Ensaio (de várias dezenas de páginas) irá estar "em construção" ao longo do tempo, podendo, no entanto ir sendo consultado.


IDEIAS ESTÉTICAS E DOUTRINAS DA ARTE NOS SÉCULOS XVI E XVII


Introdução: a estética entre metafísica do belo e poética artística

                      
                                                           Adriana Veríssimo Serrão


   Para poder delinear com precisão o alcance das doutrinas estéticas desenvolvidas por alguns pensadores portugueses dos séculos XVI e XVII, será importante começar por esclarecer a legitimidade da utilização do próprio termo "estética", um neologismo formado pelas exigências internas do racionalismo e que só entrará para o vocabulário filosófico a partir de 1750, na obra homónima de A. G. Baumgarten.
  São dois os principais sentidos que se podem distinguir neste início da Modernidade. Um, em que o estético surge elaborado do ponto de vista da metafísica, como reflexão pura sobre a Beleza. Outro, que elege como objecto privilegiado o vasto campo da arte, da sua natureza e função, abarcando uma teoria das diversas artes, com especial relevo para as artes plásticas e, de entre elas, para a pintura. A metafísica do Belo tem uma intenção fundamentadora, é um trabalho de filosofia pura que se desenvolve no plano dos princípios e dos conceitos e no qual a Beleza se apresenta como um valor principal entre as modalidades constitutivas do Ser. A teoria da arte pode assumir igualmente a fundamentação das bases da poiese pura, mas dirige-se preferencialmente à ordem do fazer humano, e em frequentes casos também à aplicação, podendo então definir as regras ou preceitos gerais da execução pragmática da arte.
   Há decerto um aspecto comum em que ambas as linhas teóricas concordam. Nesta fase da história do pensamento, estéticas metafísicas e poéticas artísticas defendem explicitamente uma visão predominantemente objectivista. Especula-se sobre ideias, operações e valores, são confrontados obras, estilos e qualidades. Mas não se tematiza como núcleo teórico forte o papel do gosto enquanto expressão do ajuizamento individual. Se o prazer face à beleza é focado, na fruição estética não se manifesta um prazer subjectivo, mas uma atitude de tipo intelectual que depende do conhecimento do conceito normalizador da beleza. Idêntica consideração se deve fazer relativamente à individualidade do artista, que embora comece a ser justificada mediante uma noção de criatividade que vai ganhando contornos cada vez mais nítidos, será por outro lado cerceada por regras que a impedem de se manifestar como exercício de uma liberdade desmedida.
    Beleza e Arte são por vezes conjuntamente vistas e mantêm alguns pontos de contacto, mas encontram-se inteiramente dissociadas na generalidade das doutrinas, formando dois núcleos paralelos, sem que entre eles se possa ainda encontrar a unidade de um ponto de vista, muito menos de uma disciplina ou de um sistema integrador. Provêm também interesses diversos, quer porque a teoria pragmática da arte nem sempre reconhece a beleza como seu valor dominante - o valor essencial da arte não é necessariamente a beleza- quer, porque a Beleza, enquanto entidade metafísica, existe em si e por si mesma, é de origem divina ou natural, mas em qualquer dos casos sempre independente do acto humano. Este é aliás um traço que permanece constante desde a reflexão da filosofia antiga, que delimitava com precisão as ordens da theôria e da technè, atravessa a estética medieval, para a qual a beleza é da ordem do ser e do saber verdadeiros e possui uma raiz teológica, cosmológica e gnosiológica, ao passo que o campo da ars se situa no âmbito estritamente humano de um fazer artificial.
    Conviria assim remeter, ainda que sucintamente, para a remota inspiração grega da estética renascentista, na triplicidade das doutrinas inaugurais de todo o pensamento estético - a platónica, a aristotélica e a plotiniana -, uma vez que a recuperação e redescoberta da Antiguidade, e também da Antiguidade filosófica, faz reviver em sínteses originais as grandes teorias antigas, ora numa singular convivência sincrética com os princípios do cristianismo ora radicalmente contrastadas e profundamente transformadas pelas novas preocupações do tempo.
    A doutrina platónica contém, na sua teoria das Ideias, uma teoria da ideia de Belo, a par de uma reflexão, muitas vezes veemente crítica, sobre a natureza das artes plásticas e da poesia. Estas são associadas ao plano da imagem (eidôlon), a qual assume, face à unidade, verdade e imutabilidade da ideia, o estatuto de plano inferior, caracterizado pelos atributos da multiplicidade, da variabilidade e da falsidade. Numa célebre passagem da República (X, 596b-599a), ao pintor cabe um grau ontológico inferior ao artífice, o possuidor de technè que fabrica os objectos de modo uniforme e repetindo um mesmo modelo ideal. Porque elege como seu modelo coisas do mundo sensível, a pintura parte já da aparência, e intensifica-a, ao introduzir na imitação de perspectiva e inovações estilísticas que acentuam cada vez mais o relativismo inerente a toda a imagem. Por isso, a Beleza, essência una e imutável, pode ser contemplada (Banquete 210e-211d), mas não produzida, pode ser, quando muito, imitada segundo uma modalidade especial de mimèsis que Platão designa de icástica e distingue da arbitrariedade da imitação fantástica (Sofista 235d-236e). A metafísica platónica introduziu como seu prolongamento consequente uma normatividade artística assente na lei da boa imitação, equivalente à cópia (eikôn) que respeita o duplo critério do bom modelo (uno, fixo e constante) e da fidelidade imitativa.
    O platonismo - que o Renascimento italiano passa a conhecer a partir das traduções de Platão e Plotino para latim e dos comentários de Marsílio Ficino em obras como a Theologgia platonica (1492) - engloba Platão e Plotino numa fusão indistinta, não obstante serem significativas as respectivas diferenças no que à estética diz respeito. Plotino contribuiu decisivamente para a clivagem entre Beleza inteligível e beleza sensível, exaltando a espiritualidade em detrimento da matéria, e fazendo desta uma realidade absoluta, inteiramente indeterminada, relegada para o plano da pura negatividade. O critério da imitação exterior teria de ser banido, uma vez que o conteúdo espiritual da obra provém exclusivamente do modelo interior imanente ao artista, da ideia geradora que se encontra na alma e que se difunde a partir dela, num movimento centrífugo de irradiação luminosa ( Enéadas, V, (). Assim, numa hierarquia ascendente, a forma visível submete-se à ideia invisível; as obras são inferiores ao artista, assim, como este é inferior à ideia da arte, e ambos, obra e artista, à actividade suprema da contemplação (Enéadas, VI, 7).
    O carácter aleatório da História humana, e em particular da história das ideias, determinaria que o contributo da Poética, obra-prima de Aristóteles divulgada a partir da edição de Aldo Manuzio, de 1508, fosse praticamente ignorado durante o Renascimento, tal como o fora na Idade Média, e apenas viesse a gerar frutos significativos no âmbito do academismo do século XVII. Será um Aristóteles legado pela escolástica medieval, autor da Metafísica, da Física e da Retórica e, em menor grau, do De Anima e da Ética, a encontrar-se no horizonte conceptual do pensamento estético renascentista. Quer por via de adesão ou de crítica a um aristotelismo muitas vezes identificado com o formalismo escolástico, a teoria das quatro causas oferecia, por si só, um modelo de arte bastante consistente. Associado à causa eficiente, o artista ganha espaço para uma actividade produtora que pode reivindicar como sua. A obra é um produto unificado e completo, um composto de matéria e de forma, um ente singular em que a forma se identifica com o eidos mental existente no espírito e se aplica harmoniosamente a uma matéria dócil e receptiva à enformação (Metafísica Z, 7 1032b). A possibilidade de dar forma à matéria e de adequar o composto artificial a um fim predeterminado pelo intelecto artístico, tal como o movimento dos seres naturais se encaminha para um fim que é a sua perfeição, alicerçava a profunda afinidade entre a obra artística e o ser vivo, moldados ambos pelo valor último da perfeição ou completude.
    A importância crucial que as doutrinas filosóficas assumem na concepção renascentista da arte deixa-se compreender também sob uma outra vertente. As teorias da arte carecem de uma sólida fundamentação teórica como via de legitimação do seu próprio exercício enquanto arte liberal. Esta ligação quase indissociável entre a reflexão teórica e a índole prática é confirmada pela proliferação dos tratados artíisticos. O surgimento do tratado de arte como género de escrita e difusão de ideias representa um fenómeno inédito na história das ideias e no qual Portugal se associa ao contexto epocal mais vasto. Frequentemente escritos por artistas, os tratados que em Itália começam a ser elaborados desde meados do século XV são ao mesmo tempo textos teóricos e verdadeiros manifestos profissionais que reivindicam e justificam para a actividade artística a autonomia de uma esfera que invariavelmente assenta no seu carácter intelectual. Mostrar como a arte tem na sua base uma actividade intelectual, é cosa mentale, na expressão paradigmática do pintor e primeiro historiador da arte moderna Giorgio Vasari, é subtraí-la ao estatuto medieval da ars mecânica dependente do ofício manual e da repetição oficinal das técnicas.. O mundo medieval legara, na divisão social das corporações profissionais, uma rígida divisão entre o intelectual e o artífice. O corpo dos saberes repartia-se conceptualmente, num elenco fixado, entre as artes do pensamento e da palavra, o Trivium, composto de gramática, retórica e dialéctica, e as artes da medida reunidas no Quadrivium, a aritmética, a geometria, a astronomia e música. Por seu turno, mestres e aprendizes das diferentes corporações, em que se incluíam também os pintores, desenvolviam um trabalho de oficina colectiva, subordinado a regulamentações brm definidas.
    A luta pela autonomização das artes plásticas, durante tantos séculos vinculadas ao estatuto artesanal, vem de par com o advento da figura do artista criador, o qual coloca a assinatura nas suas obras, protagonizando uma autoria e consagrando o gesto de uma individualidade autora e não reprodutora, que pode também assumir a iniciativa inaugural de um estilo que se sobrepõe à aprendizagem de regras. Justificada é agora a nobreza das artes e dignificado quem as pratica, uma atitude que pode assumir graus diversos, desde as reivindicações de tipo profissional que ligam a liberdade ao mérito e à remuneração das obras até à exaltação de uma superioridade de tipo metafísico. A reflexão sobre a essência do pintar, do desenhar ou do esculpir conduz à elaboração de teorias globalizantes que chegam a impor uma inteira visão do mundo baseada nas novas artes, uma cosmovisão mental e imagética na qual as técnicas e preceitos passam a ser uma componente meramente secundária.
    Considerando agora o conteúdo das ideias estéticas que se desenvolvem a partir de Itália e que se vão disseminando um pouco pela restante Europa, encontramos dois movimentos que correspondem a visões do mundo muito diferenciadas, e dão origem a estilos artísticos também diferentes e em grande medida opostos, os quais permitem definir balizas muito gerais na riquíssima produção destes séculos.




 

sexta-feira, 22 de março de 2024


 Comemorou-se no passado dia 21 o Dia Mundial da Poesia: um dos vários cartazes que nesse dia circularam.

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sexta-feira, 1 de março de 2024


 A Poesia de Stefano Raimondi foi publicada na Revista Oresteia no dia 5 de outubro de 2022.

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Scrivo poesie per vendicare tutti i bambini.
Antonia Porta

*

Nella città ci sono punti magici:
angoli dove sapere tutta l’età dell’acqua
dove ballare con la nebbia, parlare
con nessuno, confondersi.

In mezzo alla strada i bambini giocano.
Ci sono palloni
che rotolano in pace
e non li ferma nessuno: scappano.

Signore! Signore è mia!

Passandogli vicino mi sembrava
parlassero della loro vita come una metafora.

Ma invece no: erano mie le immagini
i fiati, le fattezze. Loro
mezzo metro più in là
sarebbero cresciuti, spariti
morti come tutti. Sarebbero
diventati l’edicola, il semaforo
la panetteria …
forse un giardino.

***

Escrevo poesia para vingar todas as crianças…
Antonio Porta

Há na cidade pontos mágicos:
esquinas onde aprendemos toda a idade da água
onde dançar com a névoa, falar
com ninguém, confundir-se.

As crianças brincam no meio da rua.
Ali estão as bolas
que rolam em paz
e ninguém as para: escapam.

Senhor! Senhor é minha!

Passando-lhes rente pareceu-me
que falavam da sua vida como uma metáfora.

Mas não: eram minhas as imagens
as respirações, as fisionomias. Com
meio metro a mais
teriam crescido, desaparecido
morrido como todos. Estariam
frente ao quiosque, ao semáforo
à padaria…
Ou talvez a um jardim.

***

Ci sono stanze piene di parole sole.
Altre che non si tengono neppure tra gli sguardi.
Ci sono case che non hanno pareti
altre fatte d’aria e di buio. Sono
gli spifferi, qui, ad avere ragione.

Appena fuori dalla porta
i bambini parlano sottovoce
complottano, poi corrono
giù dalle scale, si spingono
insieme alla paura…

È da lì che il buio inizia
a coprirli di alfabeti.

***

Há salas repletas de palavras solitárias.
Outras que nem sequer conservam os olhares.
Há casas que não têm paredes
outras feitas de ar e escuridão. São
as correntes de ar que, aqui, hão de ter razão.

Do lado de fora da porta
as crianças falam em voz baixa
conspiram, depois correm
pelas escadas abaixo, empurram-se
umas às outras com medo…

É a partir dali que o escuro inicia
a cobri-los de alfabetos.

Tradução de Victor Oliveira Mateus

***

Stefano Raimondi (Milano, 1964), poeta e critico letterario, laureato in Filosofia
(Università degli Studi di Milano).
Sue poesie sono apparse in “Almanacco dello Specchio” (Mondadori, 2006) e su “Nuovi
Argomenti” (2000; 2004). Ha pubblicato:Una lettura d’anni, in Poesia Contemporanea.
Settimo quaderno italiano (Marcos y Marcos, 2001); La città dell’orto (Casagrande, 2002;
La vita felice 2021 – Premio Sertoli Salis 2002); Il mare dietro l’autostrada (Lietocolle,
2005); Interni con finestre (La Vita Felice, 2009); Per restare fedeli (Transeuropa, 2013 –
Premio Marazza 2013); Soltanto vive. 59 Monologhi (Mimesis, 2016 – Premio Nazionale
Franco Enriquez 2017); Il cane di Giacometti (Marcos y Marcos, 2017- Premio Città di
Trento 2018 e Premio “Il Ceppo- Pistoia” 2018); Il sogno di Giuseppe (Amos 2019 –
Finalista Premio Città di Como 2019 e Città di Fiumicino 2019); Storie per taccuino
piccolo piccolo, (Scalpendi Editore 2022). È inoltre autore di saggi come: La ‘Frontiera’ di
Vittorio Sereni. Una vicenda poetica (1935-1941) (Unicopli, 2000); Il male del reticolato.
Lo sguardo estremo nella poesia di Vittorio Sereni e René Char (CUEM, 2007); Portatori
di silenzio, (Mimesis, 2012). È tra i fondatori della rivista di filosofia “Materiali di
estetica” (Università degli Studi di Milano) e fondatore e membro del Comitato scientifico
di “L’ABB Luoghi abbandonati, luoghi ritrovati. Laboratorio Permanente sui territori e le
comunità” Università degli Studi di Milano. Tiene corsi di scrittura poetica e Filosofia
della scrittura in diverse università, associazioni culturali e strutture scolastiche. Svolge
attività di docenza presso la Libera Università dell’Autobiografia e Scuola di scrittura
creativa “Belleville”. È membro del consiglio scientifico del Centro Studi e Ricerche sulle
Letterature Autobiografiche della LUA di Anghiari. È inoltre tra i fondatori
dell’Accademia del Silenzio.


quinta-feira, 22 de fevereiro de 2024


A poesia de José Luna Borge foi publicada na Revista Oresteia no dia 27 de fevereiro de 2023.
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DESPEDIDA

Adiós amigos todos, van llegando
esas horas violeta de la tarde
en que todo se aleja de nosotros
con terca mansedumbre, sin dolor.

Adiós dulces amantes invisibles
en queridas ciudades orvalladas,
el tiempo se dormía en nuestros brazos
y estábamos allí como en un sueño.

Adiós ríos, adiós sendas pequeñas,
trigales y labores congeladas
en el tiempo de un pueblo y su memoria
que brota como el agua de una fuente.

Nos vemos, compañeros imposibles,
amigos a quien amo,
                                 adiós a todos
que todo lo demás es triste lloro.

*****

DESPEDIDA

Adeus a todos os amigos, vão chegando
essas horas violáceas da tarde
em que tudo se afasta de nós
com irredutível mansidão, sem dor.

Adeus invisíveis e brandos amantes
em ternas cidades orvalhadas,
o tempo adormecia em nossos braços
e mantínhamo-nos ali como num sonho.

Adeus rios, adeus curtas veredas,
trigais e trabalhos estancados
no tempo de uma povoação e sua memória
que jorra como água de uma fonte.

Ver-nos-emos, companheiros inacessíveis,
amigos que amo,
                           adeus a todos
que tudo mais é triste pranto.

Tradução de Victor Oliveira Mateus


MEMORIA DE UN INSTANTE

Aquella carne tersa y nacarada
le pareció un milagro al sorprendido
chaval que contemplaba deslumbrado
aquella mata negra entre las ingles
que peraltaba en rizos charolados.

Fueron unos segundos los que estuvo
mirando ese prodigio sin decir
   palabra,
               mudo,
                        inmóvil,
                                   fascinado.

La puerta a medio abrir dejaba entrar
una franja de luz sobre los muslos
sorprendidos dejando imaginar
el nacimiento negro de un abismo
que tardaría tiempo en descifrar.

Ciego de luz y sombras, abandonó
raudo el lugar,
                       entonces no sabía
que aquel instante eterno iba a ser
su inquietante memoria de la carne.

*****

MEMÓRIA DE UM INSTANTE

Aquela carne lisa e nacarada
parecia um milagre ao surpreso
rapaz que observava deslumbrado
aquele tufo negro entre as virilhas
que se enrolava em caracóis luzidios.

Foram uns meros segundos em que esteve
olhando esse prodígio sem dizer
   palavra,
            mudo,
                        imóvel,
                                    fascinado.

A porta entreaberta deixava entrar
uma faixa de luz sobre as coxas
destapadas permitindo imaginar
o negro início de um abismo
que levaria tempo a decifrar.

Cego de luz e sombras, abandonou
rápido o lugar,
                        mas ainda não sabia
que aquele instante eterno iria ser
a sua inquietante memória da carne.

Tradução de Victor Oliveira Mateus


José Luna Borge nació en 1952 en Sahagún de Campos (León, España) y desde 1980 vive en Sevilla. Poeta, diarista, novelista, crítico literario y ensayista, sus últimas entregas son el poemario Reloj de melancólicos (2016), el diario Los hilvanes del tiempo (2023), la novela Y una tarde cualquiera esparces mis cenizas en el mar (2020) y el ensayo Víctor Botas entre el miedo y el asombro (2020)
Estos poemas inéditos pertenecen al libro de próxima aparición El húsar melancólico.