domingo, 24 de março de 2024

Este longuíssimo Ensaio (de várias dezenas de páginas) irá estar "em construção" ao longo do tempo, podendo, no entanto ir sendo consultado.


IDEIAS ESTÉTICAS E DOUTRINAS DA ARTE NOS SÉCULOS XVI E XVII


Introdução: a estética entre metafísica do belo e poética artística

                      
                                                           Adriana Veríssimo Serrão


   Para poder delinear com precisão o alcance das doutrinas estéticas desenvolvidas por alguns pensadores portugueses dos séculos XVI e XVII, será importante começar por esclarecer a legitimidade da utilização do próprio termo "estética", um neologismo formado pelas exigências internas do racionalismo e que só entrará para o vocabulário filosófico a partir de 1750, na obra homónima de A. G. Baumgarten.
  São dois os principais sentidos que se podem distinguir neste início da Modernidade. Um, em que o estético surge elaborado do ponto de vista da metafísica, como reflexão pura sobre a Beleza. Outro, que elege como objecto privilegiado o vasto campo da arte, da sua natureza e função, abarcando uma teoria das diversas artes, com especial relevo para as artes plásticas e, de entre elas, para a pintura. A metafísica do Belo tem uma intenção fundamentadora, é um trabalho de filosofia pura que se desenvolve no plano dos princípios e dos conceitos e no qual a Beleza se apresenta como um valor principal entre as modalidades constitutivas do Ser. A teoria da arte pode assumir igualmente a fundamentação das bases da poiese pura, mas dirige-se preferencialmente à ordem do fazer humano, e em frequentes casos também à aplicação, podendo então definir as regras ou preceitos gerais da execução pragmática da arte.
   Há decerto um aspecto comum em que ambas as linhas teóricas concordam. Nesta fase da história do pensamento, estéticas metafísicas e poéticas artísticas defendem explicitamente uma visão predominantemente objectivista. Especula-se sobre ideias, operações e valores, são confrontados obras, estilos e qualidades. Mas não se tematiza como núcleo teórico forte o papel do gosto enquanto expressão do ajuizamento individual. Se o prazer face à beleza é focado, na fruição estética não se manifesta um prazer subjectivo, mas uma atitude de tipo intelectual que depende do conhecimento do conceito normalizador da beleza. Idêntica consideração se deve fazer relativamente à individualidade do artista, que embora comece a ser justificada mediante uma noção de criatividade que vai ganhando contornos cada vez mais nítidos, será por outro lado cerceada por regras que a impedem de se manifestar como exercício de uma liberdade desmedida.
    Beleza e Arte são por vezes conjuntamente vistas e mantêm alguns pontos de contacto, mas encontram-se inteiramente dissociadas na generalidade das doutrinas, formando dois núcleos paralelos, sem que entre eles se possa ainda encontrar a unidade de um ponto de vista, muito menos de uma disciplina ou de um sistema integrador. Provêm também interesses diversos, quer porque a teoria pragmática da arte nem sempre reconhece a beleza como seu valor dominante - o valor essencial da arte não é necessariamente a beleza- quer, porque a Beleza, enquanto entidade metafísica, existe em si e por si mesma, é de origem divina ou natural, mas em qualquer dos casos sempre independente do acto humano. Este é aliás um traço que permanece constante desde a reflexão da filosofia antiga, que delimitava com precisão as ordens da theôria e da technè, atravessa a estética medieval, para a qual a beleza é da ordem do ser e do saber verdadeiros e possui uma raiz teológica, cosmológica e gnosiológica, ao passo que o campo da ars se situa no âmbito estritamente humano de um fazer artificial.
    Conviria assim remeter, ainda que sucintamente, para a remota inspiração grega da estética renascentista, na triplicidade das doutrinas inaugurais de todo o pensamento estético - a platónica, a aristotélica e a plotiniana -, uma vez que a recuperação e redescoberta da Antiguidade, e também da Antiguidade filosófica, faz reviver em sínteses originais as grandes teorias antigas, ora numa singular convivência sincrética com os princípios do cristianismo ora radicalmente contrastadas e profundamente transformadas pelas novas preocupações do tempo.
    A doutrina platónica contém, na sua teoria das Ideias, uma teoria da ideia de Belo, a par de uma reflexão, muitas vezes veemente crítica, sobre a natureza das artes plásticas e da poesia. Estas são associadas ao plano da imagem (eidôlon), a qual assume, face à unidade, verdade e imutabilidade da ideia, o estatuto de plano inferior, caracterizado pelos atributos da multiplicidade, da variabilidade e da falsidade. Numa célebre passagem da República (X, 596b-599a), ao pintor cabe um grau ontológico inferior ao artífice, o possuidor de technè que fabrica os objectos de modo uniforme e repetindo um mesmo modelo ideal. Porque elege como seu modelo coisas do mundo sensível, a pintura parte já da aparência, e intensifica-a, ao introduzir na imitação de perspectiva e inovações estilísticas que acentuam cada vez mais o relativismo inerente a toda a imagem. Por isso, a Beleza, essência una e imutável, pode ser contemplada (Banquete 210e-211d), mas não produzida, pode ser, quando muito, imitada segundo uma modalidade especial de mimèsis que Platão designa de icástica e distingue da arbitrariedade da imitação fantástica (Sofista 235d-236e). A metafísica platónica introduziu como seu prolongamento consequente uma normatividade artística assente na lei da boa imitação, equivalente à cópia (eikôn) que respeita o duplo critério do bom modelo (uno, fixo e constante) e da fidelidade imitativa.
    O platonismo - que o Renascimento italiano passa a conhecer a partir das traduções de Platão e Plotino para latim e dos comentários de Marsílio Ficino em obras como a Theologgia platonica (1492) - engloba Platão e Plotino numa fusão indistinta, não obstante serem significativas as respectivas diferenças no que à estética diz respeito. Plotino contribuiu decisivamente para a clivagem entre Beleza inteligível e beleza sensível, exaltando a espiritualidade em detrimento da matéria, e fazendo desta uma realidade absoluta, inteiramente indeterminada, relegada para o plano da pura negatividade. O critério da imitação exterior teria de ser banido, uma vez que o conteúdo espiritual da obra provém exclusivamente do modelo interior imanente ao artista, da ideia geradora que se encontra na alma e que se difunde a partir dela, num movimento centrífugo de irradiação luminosa ( Enéadas, V, (). Assim, numa hierarquia ascendente, a forma visível submete-se à ideia invisível; as obras são inferiores ao artista, assim, como este é inferior à ideia da arte, e ambos, obra e artista, à actividade suprema da contemplação (Enéadas, VI, 7).
    O carácter aleatório da História humana, e em particular da história das ideias, determinaria que o contributo da Poética, obra-prima de Aristóteles divulgada a partir da edição de Aldo Manuzio, de 1508, fosse praticamente ignorado durante o Renascimento, tal como o fora na Idade Média, e apenas viesse a gerar frutos significativos no âmbito do academismo do século XVII. Será um Aristóteles legado pela escolástica medieval, autor da Metafísica, da Física e da Retórica e, em menor grau, do De Anima e da Ética, a encontrar-se no horizonte conceptual do pensamento estético renascentista. Quer por via de adesão ou de crítica a um aristotelismo muitas vezes identificado com o formalismo escolástico, a teoria das quatro causas oferecia, por si só, um modelo de arte bastante consistente. Associado à causa eficiente, o artista ganha espaço para uma actividade produtora que pode reivindicar como sua. A obra é um produto unificado e completo, um composto de matéria e de forma, um ente singular em que a forma se identifica com o eidos mental existente no espírito e se aplica harmoniosamente a uma matéria dócil e receptiva à enformação (Metafísica Z, 7 1032b). A possibilidade de dar forma à matéria e de adequar o composto artificial a um fim predeterminado pelo intelecto artístico, tal como o movimento dos seres naturais se encaminha para um fim que é a sua perfeição, alicerçava a profunda afinidade entre a obra artística e o ser vivo, moldados ambos pelo valor último da perfeição ou completude.
    A importância crucial que as doutrinas filosóficas assumem na concepção renascentista da arte deixa-se compreender também sob uma outra vertente. As teorias da arte carecem de uma sólida fundamentação teórica como via de legitimação do seu próprio exercício enquanto arte liberal. Esta ligação quase indissociável entre a reflexão teórica e a índole prática é confirmada pela proliferação dos tratados artíisticos. O surgimento do tratado de arte como género de escrita e difusão de ideias representa um fenómeno inédito na história das ideias e no qual Portugal se associa ao contexto epocal mais vasto. Frequentemente escritos por artistas, os tratados que em Itália começam a ser elaborados desde meados do século XV são ao mesmo tempo textos teóricos e verdadeiros manifestos profissionais que reivindicam e justificam para a actividade artística a autonomia de uma esfera que invariavelmente assenta no seu carácter intelectual. Mostrar como a arte tem na sua base uma actividade intelectual, é cosa mentale, na expressão paradigmática do pintor e primeiro historiador da arte moderna Giorgio Vasari, é subtraí-la ao estatuto medieval da ars mecânica dependente do ofício manual e da repetição oficinal das técnicas.. O mundo medieval legara, na divisão social das corporações profissionais, uma rígida divisão entre o intelectual e o artífice. O corpo dos saberes repartia-se conceptualmente, num elenco fixado, entre as artes do pensamento e da palavra, o Trivium, composto de gramática, retórica e dialéctica, e as artes da medida reunidas no Quadrivium, a aritmética, a geometria, a astronomia e música. Por seu turno, mestres e aprendizes das diferentes corporações, em que se incluíam também os pintores, desenvolviam um trabalho de oficina colectiva, subordinado a regulamentações brm definidas.
    A luta pela autonomização das artes plásticas, durante tantos séculos vinculadas ao estatuto artesanal, vem de par com o advento da figura do artista criador, o qual coloca a assinatura nas suas obras, protagonizando uma autoria e consagrando o gesto de uma individualidade autora e não reprodutora, que pode também assumir a iniciativa inaugural de um estilo que se sobrepõe à aprendizagem de regras. Justificada é agora a nobreza das artes e dignificado quem as pratica, uma atitude que pode assumir graus diversos, desde as reivindicações de tipo profissional que ligam a liberdade ao mérito e à remuneração das obras até à exaltação de uma superioridade de tipo metafísico. A reflexão sobre a essência do pintar, do desenhar ou do esculpir conduz à elaboração de teorias globalizantes que chegam a impor uma inteira visão do mundo baseada nas novas artes, uma cosmovisão mental e imagética na qual as técnicas e preceitos passam a ser uma componente meramente secundária.
    Considerando agora o conteúdo das ideias estéticas que se desenvolvem a partir de Itália e que se vão disseminando um pouco pela restante Europa, encontramos dois movimentos que correspondem a visões do mundo muito diferenciadas, e dão origem a estilos artísticos também diferentes e em grande medida opostos, os quais permitem definir balizas muito gerais na riquíssima produção destes séculos.