domingo, 19 de março de 2023



                Lamento das mulheres afegãs


Olhem para nós. Ouçam-nos.

Não somos vultos sem identidade.

Somos mulheres.

Somos mães filhas irmãs amigas.

Temos um nome.

Indefesas frente ao terror

é silencioso o lamento o arrepio.

Qualquer gesto nos pode destruir.

Ficámos sem chão.

Avistamos a montanha

mas um deserto invisível

acorrenta-nos os pés.

O céu é um abismo.

Onde estão as estrelas

os anjos o nosso deus?

Não. Não choramos.

Temos o olhar parado nos livros proibidos

na inutilidade dos dias que hão-de vir

nas palavras reprimidas

na mais indecifrável prece

tão perto da descrença.

Quem poderá salvar-nos?


  Graça Pires. O improvisao de viver. Lisboa: Poética, 2023, p 63.

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sábado, 18 de março de 2023



Obrigado, Senhor
por esta criatura
que a sacudir a chuva das asas
se aproxima aos saltinhos cautelosos
para apanhar uma migalha de pão
quase debaixo dos meus pés
quando espero sentado num banco
a camioneta que me leva a casa
depois de uma noite sem dormir, no hospital.
Obrigado de todo o coração pela companhia.
Obrigado por não a teres assustado.


Emilio Coco. Teologia Doméstica. Fafe: Editora Labirinto, 2022, p 17 (Prefácio e Tradução de José Manuel de Vasconcelos).
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sábado, 11 de março de 2023


Trabalho sem luz sobre ritmo e palavras
é uma pancada mano a mano sem medo
e batota forjada nas campanhas de pesca
que descarada melancolia nós levamos


É uma pancada mano a mano sem medo
felizes os amores na terra invisível
camisolas de jogo com o cromo de cada um
amaciando a espera, um textinho no telefone


Felizes os amores na terra invisível
é complicado a terra assim sem mostrar
o joelhinho ao sol, o perfume a favor
todo o tempo do mundo para lembrar


  Hugo Milhanas Machado. Sarilho da Berlenga Futebol Clube. Fafe: Editora Labiirinto: 2022, p 45.
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sexta-feira, 10 de março de 2023


   Há em Sophia uma aceitação plena da vida que assume uma certa forma de panteísmo, que em Pascoaes terá talvez a sua origem, mas a que Sena é totalmente alheio. Não que não vibre no nosso poeta uma altiva pulsão pagã, mas em Sena a luta do que é humano contra o que é natural, do orgânico conra o inorgânico, do articulado contra o inarticulado prevalece na raiz da criação do mundo. E ele o diz uma vez mais no já citado poema A Morte, o Espaço, a Eternidade (...).
   Mas a plena aceitação do mundo no êxtase panteísta de Sophia não implica menos revolta contra o desconcerto e a injustiça desse mesmo mundo, o que a poeta vê como uma ofensa à ordem natural...


  Luís Filipe Castro Mendes. Um estranho animal de duas cabeças O Escritor Diplomata. Fafe: Editora Labirinto, 2022, p 61.
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quarta-feira, 8 de março de 2023


 Viajante solitário


Tinha nevado durante a noite
mas a neve era tão fina
que derretia debauxi das botas


Só um corvo
quebrava o silêncio e a solidão


Parou e olhou pra trás
assim ficava marcada
a sua passagem sobre a Terra


Se voltasse a nevar
as suas pegadas desapareceriam
e ele com elas


Ninguém dava por nada
ninguém daria pela sua falta.


  Manuel Silva-Terra. estado poético. Leça da Palmeira: Eufeme: 2023, p 25.
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quinta-feira, 2 de março de 2023


Segundo o fio sombrio desta aventura lamentável, eu distingo a trama duma história de amor às avessas. Violante-Beatriz incarnava, para o seu cunhado, toda a beleza moral, toda a ternura, toda a graça feminina a cuja atracção, pelos motivos que esta narração já esclareceu, ele jurara, desde a adolescência, não sucumbir em caso algum. Ele amou a sua cunhada, e, ao mesmo tempo, detestou-a por despertar nele sentimentos que odiava. Ela representava a prova viva que ele não era tão mau quanto decidira aparentar, e, precisamente por esta razão, viu nela a sua principal inimiga. Obstinou-se a rejeitá-la, para matar em si toda a veleidade de se enternecer. Ainda que natural da Bavária e com traços ingratos, ela fazia-lhe lembrar, pela palidez frágil, o feitio afável, a sua abnegação e a sua humildade, as inúmeras Madonas da escola de pintura florentina. Que ela evocasse o ideal poético e perpetuasse o mito duma cidade amaldiçoada, era o que ele menos lhe podia perdoar.


   Dominique Fernandez. O Último dos Médicis. Venda Nova: Bertrand Editora, 1996, p 294.
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