terça-feira, 31 de julho de 2018



                      Soneto: A Prenda (1)


Envia-me uma prenda para que a minha esperança sobreviva
   ou os meus pensamentos ansiosos possam dormir e repousar;
envia-me algum mel para adoçar a minha colmeia,
   para que nas minhas paixões possa esperar pelo melhor.
Não te peço uma fita tecida pelas tuas mãos,
   para tecer os nossos amores no maravilhoso esforço
da juventude agora emocionada, nem um anel para mostrar
   a situação do nosso afecto que, como este, é redondo e simples,
assim na simplicidade, deveriam encontrar-se os nossos amores.
   Não, nem os corais que envolvem o teu pulso,
entrelaçados, juntos, para que venham mostrar
   aos nossos pensamentos como deviam ficar unidos.
Não, nem o teu retrato ainda que tão gracioso
   e atraente, porque o que é melhor é do melhor que gosta:
nem os engenhosos versos que tantos são
   entre os escritos que tu me enviaste.

Tudo o que de ti já possuo é para mim suficiente:
Jura apenas acreditares como te amo, e nada mais.
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  Donee, John. Poemas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2017, p 81 (Tradução e Prefácio de Maria de Lourdes Guimarães e Fernando Guimarães).
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(1) Este soneto que pertence ao conjunto "Songs and Sonnets" apresenta uma certa liberdade quanto à forma, pois ultrapassa o número habitual de versos que, no caso do chamado estrambote do soneto tradicional, se seguem aos catorze versos do soneto tradicional, pois esse acrescento raramente atinge mais do que dois versos.
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segunda-feira, 30 de julho de 2018


              O Isco

Vem viver comigo e sê o meu amor,
e novos prazeres experimentaremos
entre areias douradas e ribeiros cristalinos,
com fios de seda e anzóis de prata.

Ali correrá o rumoroso rio
mais aquecido pelos teus olhos do que pelo sol,
onde os peixes enamorados, implorando,
entre si, a si mesmos se atraiçoam.

Quando nadares naquela água viva,
cada peixe em cada canal
há-de dirigir-se a ti amorosamente,
mais feliz por te achar do que tu a ele.

Se odeias ser assim vista
pelo sol e pela lua, obscurece-os a ambos,
e se eu próprio te puder ver,
da sua luz não necessitarei, tendo-te a ti.

Que outros, enregelados, com canas de pesca,
feridas as suas pernas por conchas e algas,
ou traiçoeiramente prendam o pobre peixe
com laços que o apanhem ou com redes ondulantes;

que mãos ásperas e ousadas, do seu ninho viscoso
o venham libertar junto aos bancos de areia;
ou que, estranhos traidores, as moscas nos fios de seda
enfeiticem os olhos errantes do infeliz peixe.

Tu não necessitas de tais embustes,
porque és o teu próprio isco,
e, ai de mim, muito mais sábio que eu
será aquele peixe que não é apanhado.
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  Donne, John. Poemas. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2017, p 23 (Tradução e Prefácio de Maria de Lourdes Guimarães e Fernando Guimarães).
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sexta-feira, 27 de julho de 2018


Quando o cabelo segue o caminho

das folhas
dos poemas
como penas
e o olhar pousa na partida
dos pássaros
e o coração atravessa campos
de algodão
e a pele recolhe a saudade
do sol
e a menina recua à recordação
do fogo
e a criança resiste ao recomeço
triste
e o herói da lança em riste te permite sentir de novo tudo
o que sentiste e
que o vento voando vai
levar
com o perfume do loendro,

é Setembro.


   Pedro, Risoleta C. Pinto. Ávida Vida. S/c.: Edições Sem Nome, 2018, p 48.
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Num arrozal de rosas,

digo,
num roseiral de arroz
a sós
bordei lençol
de avós
compus
o amor
libertei os laços
de nós


  Pedro, Risoleta C. Pinto. Ávida Vida. S/c.: Edições Sem Nome, 2018, p 21.
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quarta-feira, 25 de julho de 2018


                    Desigual Combate


Qué extraña, triste figura
se agita por esos montes
de la sierra morena
como un ángel caído, como un loco
que ha perdido las alas
en desigual combate con el ansia
y aún mantiene
la blanca toga de los inocentes
y las barbas al viento...

A las piedras les canta que el amor
es razón de sinrazón, razón secreta
de la íntima batalla de los hombres
contra el desatino;
a los árboles altos que las lágrimas
son el secreto don del caballero
al que ya no le ampara
el vigor de su brazo ni la férrea
voluntad de abrir caminos
al sueño y a la aventura...

Vencido por amor, figura triste,
derrotado y caído ángel del cielo
sobre la sierra morena,
sabe ya que no hay locura
gloriosa ni inmortal ni legendaria
si no es locura de amor.

Y en ese trance espera
a que llegue la aurora...


   Aganzo, Carlos. Arde el Tiempo, Antología Civil. Sevilla: Editorial Renacimiento, 2018, pp 141-142.
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terça-feira, 24 de julho de 2018


Tienen todos los pájaros
devoción por el aire,
ese misterio azul que los sotiene
por encima del mundo.
Sabes que soy del mundo, y aún con todo
hay mañanas que vuelo
más alto que el halcón, noches que canto
mejor que el ruiseñor, días de lluvia
que me aferro a tus manos
con la fuerza de un águila,
y me duele la espalda si recuerdo
el tiempo aquel en que tuvimos alas,
antes de que viviera entre nosotros
el oscuro baldón de la memoria.

Todos los hombres llevan
un Ícaro en los ojos.
Todos los hombres tienen
devoción por el alma de los pájaros.
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 Aganzo, Carlos. Arde el Tiempo, Antología Civil. Sevilla: Editorial Renacimiento, 2018, p 70.
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sexta-feira, 20 de julho de 2018


oh o teu sorriso
tão amado tão distante
na cor do meu vinho

ouço a tua música
sonata do coração
e do mundo em volta

haverá prazer
mais dócil do que seguir
a luz do teu rosto?


   Brito, Casimiro de. Memória do Paraíso. S/c.: Editora Licorne, s/d., p 81.
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olho para ti
e sinto que fui cego
a vida inteira

eu não quero nada
flutuar enquanto posso
lembrar nosso chão

sei que te perdi
mas o teu espelho ficou
quem sabe se voltas


 Brito, Casimiro de. Memória do Paraíso. S/c.: Editora Licorne, s/d., p 49.
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quarta-feira, 18 de julho de 2018



máscaras apenas
o que foi um grande amor?
máscaras tão vivas

a primeira vez
que fui por amor ferido
fulgor para sempre

não sei se os anjos
têm asas ou não - voas
no meu coração


  Brito, Casimiro de. Memória do Paraíso. S/c.: Editora Licorne, s/d, p 17.
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terça-feira, 17 de julho de 2018


   Havia no corpo de Margarida uma modificação relacionada com o ser. "Os narcisos não podem ser santos?!", interroga-se ela. Ao mesmo tempo que se sentia dominada por semelhante inquietude, reparou que, perto dos cinquenta anos, a sua infância adquirira o máximo de conhecimento, perdia-se no jogo, como nunca.
(...)
   O cálamo da caligrafia está sobre a mesa, a pena da ave, e o barco de um de vós, marinheiro; o cálamo não escreverá mais, a pena não servirá mais para pena de voo. (...) Ele escrevia as cartas a quem não sabia ler (...).
   A origem das letras é a luz, cuja fonte é a pena que se inscreve sobre a tábua do Grande Destino.
   A origem das letras é uma luz que emana da ponta de uma pena, inscrevendo pela primeira vez traços na tábua do Grande Destino.
   Cada letra é um Anjo criado para glorificar (...) Época em que tenho receio não sei bem de quê, de algo que não se precisa. Hoje passei um dia delicioso, não tanto a escrever, a transcrever ideias, mas a copiar textos, a escrever cartas, a ter um contacto menos profundo com a escrita. De qualquer forma, foi delicioso, aqueceu-me o coração por baixo do xaile branco, com o broche. Tanto mais que os meus sonhos se têm encadeado em série e, assim vistos (têm) sido estranhos, e provavelmente com um sentido.
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  Llansol, Maria Gabriela. Numerosas Linhas, Livro de Horas III. Porto: Assírio & Alvim, 2013, pp 178-185.
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domingo, 15 de julho de 2018


   Sou ingrata para com a casa de Jodoigne, que me parece agora uma prisão. Eu não desejo ficar aqui para escrever uma obra, nenhuma obra é mais preciosa do que viver, e os livros são sempre gavetas, memórias onde arrecado o meu destino,
que há-de ir para a frente,
como o cavalo de que sou a companheira.
   Ter vindo de Portugal deixa-me de luto, e eu escrevo para exorcisar minha melancolia, minha dedicação a um objecto perdido. Se eu pudesse ser uma beguina sobre o Cabo Espichel, visitar a horas alegres todos os entes que conheci, passear com Luís M. sob os revérberos da praia ______________
experimentar o mar nos pés descalços, e poder voltar para as nossas pequenas casas sobre as arcadas, sabendo que poderemos ver sempre, quando quisermos, ou disso tivermos real necessidade, nossa mãe, Ana de Peñalosa.
   Persegue-se hoje a ideia de que não passo de um criador limitado.
   Não sei se desejo viver em Portugal; pondo de parte os profundos laços afectivos que me ligam a algumas pessoas, e à pessoa-língua, que cresce quando eu estou longe, desejaria eu viver num país tão marcado pela existência de desníveis sociais? Choca-me o ódio.
(...)
   Vim aqui para não ouvir falar de mim mesma e ficar na companhia dos mais humildes seres. Compreendi claramente que uma pequena imortalidade depois da morte nada tem a ver com a profunda absorção no conhecimento com sentido, que eu procuro. Voltei desta viagem a Portugal, mas tinha um pouco de receio de ficar-me nela.
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  Llansol, Maria Gabriela. Numerosas Linhas, Livro de Horas III. Porto: Assírio & Alvim, 2013, pp 115-117.
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sábado, 14 de julho de 2018

Acerca dos livros distinguidos no último Prémio Literário Soledade Summavieille:
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- A Transfiguração da Fome de Sara F. Costa (Menção Honrosa do referido Prémio) terá a sua Apresentação no espaço Menina e Moça (ao Cais do Sodré), Rua Nova do Carvalho, 40-42, 1200-292, no próximo dia 28 de julho (sábado), pela 17:00H. Este livro terá uma Nota de Abertura da autoria de José Luís Peixoto.
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- Sobre o Prumo das Falésias de Rui Miguel Fragas (Menção Honrosa no mesmo Prémio) terá a sua Apresentação em data a indicar, logo após as férias, na Figueira da Foz.
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- O Rosto das Metáforas de Jorge Paulo (livro vencedor do Prémio Soledade Summavieille) terá também a sua Apresentação, em Lisboa, logo após as férias. Este livro terá uma Nota de Abertura da autoria de Victor Oliveira Mateus, que segue aqui em pré-publicação:
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                         O rosto das metáforas de Jorge Paulo: algumas considerações
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   O Livro O rosto das metáforas de Jorge Paulo apresenta-nos uma escrita simultaneamente introspetiva e de observação daquilo que no mundo é falência e frágil réstia de abertura a possíveis. Estamos perante um caminho existencial e uma tecedura onde o sagrado e o laico ora correm a par, ora se interpenetram. Este tipo de abordagem do fazer poético, inusitado por entre as múltiplas tendências da poesia portuguesa contemporânea, oferece-nos uma manipulação cuidada do léxico sem concessões a maneirismos, a sentidos espúrios e a uma ganga consentânea com o ruído e o vendável. Estamos perante, pois, um corajoso distanciamento do hábito e do sempre igual, que nos merece uma leitura cuidada e liberta de a prioris.
   Nota-se nesta poesia influências não só de Escolas Filosóficas da Antiguidade, como por exemplo, o Estoicismo: “persigo do tempo o gume austero/ e a franja do caminho em que persisto” (p 7); “somos, porém, uma rasura apenas/ que o discurso do tempo consentiu.” (p 21); “Mais vale assim real e certeiro,/ que a trágica comédia do verniz da vida!” (p.26), mas também de filósofos do século XX como Heidegger: “Cada fruto é a mão da vida, velando junto ao abismo/ a casa do ser.” (p 31) e os momentos de desalento extremo tangenciam Cioran: “Porque terei eu de ser aqui/ neste excesso de nada,/ nesta escassez de tudo,” (p 11). Esta poesia é também traspassada por todo um aparelho concetual específico de uma visão cristã do estar-aqui (cf p 13, p 24, p 25, p 41).
   O desalento que o eu-lírico deste livro de Jorge Paulo arvora como marco do seu habitar aparece frequentemente geminado com outras instâncias e valorações, como por exemplo a tristeza, a solidão e a efemeridade: “Esqueço-me de acontecer!/ Talvez seja de mim mesmo o estranho ausente,/como se as coisas e os seres se diluíssem na bruma do tempo.// Esqueço que sou, também eu,/ esse estranho ruído que atravessa a solidão/(…) assim me apendo à tristeza da tarde.” (p 28); “fui eu mesmo sem dobras sobre o infinito,/ coisa amarrotada nas esquinas foragidas/ emigrando para longe de todas as esperanças.” (p 29); “tudo se esbate na cupidez do nada.” (p 13). Este descoroçoamento do eu-poético surge marcado pelo hiato existente entre ele e o meio envolvente (a cidade, p 25 e p 49; o tempo vivido, p 9), mas também pelo afastamento dessa infinitude, arquétipo e fundamento do habitar, que é recorrentemente invocada: “Dá-me, peço, a lisura da palavra ausente,/ cevada nos fonemas interditos/(…) Dá-me, pois, te peço, essa verdade/ que sem ti desacontece/ e então serei de novo esse caminho/ onde as cidades desaguam” (p 17); “abri, ó ventos, na carne do tempo/ a flor da eternidade imerecida” (p 27). Este apelo e este anseio de que o poeta se faz arauto “no logradouro da vida” e na “lassidão dos dias”, se, por um lado, o afasta definitivamente das escritas da melancolia, por outro, insere-o num paradigma igualmente importante: “livra-nos da indiferença em relação à miséria, /ao sofrimento, às dissonâncias// e que a tua mão se nos estenda/ para passarmos da pedra à estepe e à esperança” (In O nome e a forma, José Augusto Mourão, p 141); “Ao que vem depois de ti/ cede o instante/ sem pronunciar/ seu nome” (in O viajante sem sono, José Tolentino Mendonça, p 49); “Calando gritos nas/ dores do parto,/ eu de pele toda aberta/(…) esforçando a vinda,/ ampliando a vida,/ expelindo antigas sementes.” (in Quando mais luz, José Félix Duque, p 27). Vemos, por conseguinte, que em O rosto das metáforas de Jorge Paulo, o desalento e o desencanto, apesar intrínsecos à voz poética que percorre todo o livro (atente-se, por exemplo, às várias referências à “porta fechada”!), não são radicais: entre o espaço onde somos “uma rasura apenas” e a abertura a possíveis existe uma mediação – frágil, mas existe!: “Calo-me. E espero que o silêncio esclarecedor me invada o ser./ Talvez assim, olhos fechados nas fímbrias da noite/ tudo irrompa dia claro sobre o abismo da alma. (p 32). Essa mediação, esse veículo que, neste livro de Jorge Paulo, afasta o eu-poético de um pessimismo extremado, aparece numa figuração dual: é a transcendência intuída, mas também essa personagem amada - quer presente fisicamente quer como estela inquebrantavelmente fixada na memória -, que, mesmo quando ausente em corpo, fulgura como mecanismo compensatório, como aceno dizendo, que, apesar da mágoa e da nostalgia, há uma fresta que nos afasta da desolação absoluta tal como a podemos encontrar nas escritas da dor de uma Duras ou de uma Nathalie Sarraute:
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Resta-me o que foste e o que fui contigo,
pássaro na copa dos sonhos
ou lucidez tresmalhando a bruma fria.
Pelo menos, era
(e agora, como ser no deserto de ti?),
pelo menos, dava a mim mesmo a sensação
de um futuro qualquer.

Se ao menos essa memória permanecesse,
se ao menos a memória fosse terra firme
onde aportar depois da viagem!
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(p 12)
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Em O rosto das metáforas , ao nível formal, predomina o poema longo em verso livre, cuja estrutura estrófica varia de poema para poema, contudo, podemos também encontrar nesta obra sonetos decassilábicos com esquemas rimáticos diferentes (interpolados e alternados) onde sobressaem as rimas ricas e as perfeitas. Com este procedimento o poeta enfatiza um dado procedimento estilístico: o ritmo e a cadência subalternizam-se relativamente ao sentido. Sentido esse que é expressão de uma voz poética marcada pelo desalento e pela perda; voz numa relação dialógica e angustiada com o seu espaço:
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Passo e a cidade não inscreve
o som discreto dos meus dias.

Um silvo surdo na alameda breve:

oh cidade de membros às fatias!
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(p 49)
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voz que, apesar da inclemência da memória, reconhece que o possível existiu e existe na margem do aberto, mas que dele, no hoje que lhe é dado viver, tem apenas o rosto das metáforas.
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sexta-feira, 13 de julho de 2018


   Os objectos dispersos, fora do seu contexto, não são os mesmos. São outros que já não insinuam nada ou muito pouco. Que já não vibram.
(...) a escrita circula permanentemente, em mim e no Augusto, isto é, o real nosso que perfeitamente conhecemos e se desenvolve sem medida. Incluindo sempre o inesperado e o impossível. Quanto mais a casa está deserta, mais o horizonte é distante e, felizmente, sempre povoado. (...) Tinha intenção, há instantes, de ler um livro (que não os meus), mas basta-me senti-lo ao lado para que a sua força me faça, por meu lado, escrever; é um circuito perfeitamente definido, cheio de histórias e destino. (...) Parece-me que é com os olhos que ouço sempre primeiro as palavras, com seu traço, cor, som, memória, melancolia..
(...)
   Retomo o que disse atrás; sem melancolia, eu nunca poderia escrever. Foi pela nostalgia que cheguei às palavras, à notação verbal de um panorama. (...) Quando olho, para escrever, à primeira vista tudo me parece inacessível, irrepresentado, ou só representado para mim, por meus meios. Segue-se uma espécie de decifração fácil e imediata, em que escrever depois de ver desemboca na comunicação.
   Fora pela nostalgia que chegara às palavras.
(...)
   Como é possível que o tempo tenha assim passado e desfeito as silhuetas tangíveis dos corpos? Como é possível que eu não tenha compreendido verdadeiramente o sentido do que minha avó Maria dizia, que na morte somos todos iguais?
(...) Vivo com animais, mas quanto a pessoas sinto-me numa ilha deserta. (...) Evidentemente que não gosto menos do silêncio, mas gostaria de poder abordar naturalmente os outros, trocar com eles alguns fósforos, já não digo velas, para iluminar este caminho de implicações imprevisíveis e desconhecidas...
(...)
   Depois de ter escrito, quarta e quinta, creio, da semana passada, alguns textos verdadeiros, sinto-me outra vez sem coragem. Aqui, o isolamento é total; percorro a minha torre de marfim com a sensação de que os anos me trouxeram, progressivamente, para fora da vida. Só em certas ocasiões o caudal dessa mesma vida parece encontrar-me, servir-se de mim para manifestar suas consequências mais longínquas e profundas, ficar algum tempo e afastar-se de novo. De facto, tal caudal, rio, existe; mas eu, devo ou não rodear-me de gente?
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 Llansol, Maria Gabriela. Numerosas Linhas, Livro de Horas III. Porto: Assírio & Alvim, 2013, pp 34-45.
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quarta-feira, 11 de julho de 2018


"E de súbito senti que a perfeição que eu vivia junto de uma mulher bela e completa, que a vida me tinha posto à beira das ondas num mês de Setembro, preenchia a minha vida domesticada, civilizada, mas não a minha vida selvagem. Impossível explicar por palavras. Para que compreendas, a minha vida precisava de fidelidade e de infidelidade. A fidelidade era vivida com ela, a tua irmã Charlote, a infidelidade, de que também precisava, não tinha rosto, era vivida com vários outros rostos sobrepostos, e eu queria as duas, a fidelidade e a infidelidade. Sentia prazer nesse risco, em viver uma assimetria desconfortável, entre a vida fiel a Charlote e a vida dissoluta com quem calhava. Sentia prazer em tentar equilibrar com dificuldade a vida selvagem e a vida pura, sabendo perigosamente que as duas residiam no mesmo peito. E nesse balanço desajustado, por incrível que te pareça, ou não, existia equilíbrio. Mas a partir de certa altura passou a haver um desequilíbrio insustentável. O lugar da fidelidade continuava a ocupar um espaço tão desmesurado que não permitia o espaço da infidelidade, e eu não queria desperdiçar as hipóteses de vida que me permitiam esta segunda parte. Em suma, eu teria desejado guardar num cofre, fechado à chave, o amor que sentia pela tua irmã para me entregar à rédea solta da infidelidade. Porque, ao contrário que estarás a pensar neste instante, eu amava-a" - disse Amadeu Lima. "Entre mim e ela surgia um relâmpago que não acontecia com mais ninguém. Estabelecia-se entre nós uma alegria pura por efeito dela. (...) Agora conto-te a ti, que tens apenas vinte e sete anos, para que não esqueças que no interior do coração humano existem mistérios que são inexplicáveis, tão inexplicáveis quanto na escala teológica são os mistérios de Deus."
(...) "É possível que durante instantes tenha desejado que ela não assistisse ao desmoronamento da imagem que havia feito de mim (...). Depois dessa noite, tudo foi horrível. O enfrentamento, a incapacidade de me explicar, o meu arrependimento, a impossibilidade de haver perdão num caso semelhante. (..) Mas talvez o que mais me tenha magoado, e me fez compreender que o nosso caso havia sido estranhamente singular, foi saber, passado algum tempo, que o filho de Charlote Galeano tinha o meu rosto.(...) Tenho avistado o David várias vezes ao longo destes anos. Parece-se comigo muito mais do que os outros meus filhos. Não tenho mais nada que te possa explicar. Ultimamente, várias vezes tentei contar a verdade a Charlote, nunca foi possível. Ela tem receio de que eu a convença com uma mentira, quando eu só quero contar a verdade. Faz bem, tem os seu motivos... "
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  Jorge, Lídia. Estuário. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2018, pp 267-270.
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segunda-feira, 9 de julho de 2018


Não me lembro dos rostos, mas lembro-me que eram vinte e quatro, e de entre eles alguns traziam as mulheres. Um dia o pai chamou-nos, queria que nos vissem, aos dois, a Tatiana e o Manuel. como estávamos crescidos, quase adultos. Universitários. Um dos vinte e quatro disse - "Estudos de direito? Meu caro Custódio, faz você muito bem. A rapariga é para casar, mas o rapaz é para entrar nos bancos através da porta do direito. Só aconselho direito para aceder aos bancos. É nos bancos que tudo se vai jogar. Num futuro muito próximo, não interessa estar ao lado de quem é obrigado a fazer o dinheiro. Sofre-se muito, e só raramente é rentável. O importante será lidar com o dinheiro e servir-se o próprio directamente dele. Diz-me a minha intuição que daqui a uns tempos só haverá dois tipos de indivíduos, os idiotas que labutam no trabalho e ganham pouco ou nada, e os inteligentes que vivem no meio do dinheiro que os outros ganham e detêm tudo. Mande-o para os bancos, Custódio Galeano. Você e eu já não teremos tempo de ver, mas dentro de algumas décadas as cidades, as nações, os países, não contarão para nada. O mapa-múndi estará dividido conforme as siglas dos bancos, toda a guerra provirá dos bancos, e a paz, se a houver, também. Faz você muito bem mantê-lo nos estudos do direito. E a rapariga que encontre um bom marido."
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 Jorge, Lídia. Estuário. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2018, pp 124-125.
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sexta-feira, 6 de julho de 2018


Achavam que o melhor que se poderia dizer da irmã seria que, aos vinte e três anos, ela havia desprezado o namorado para se juntar com um tipo bastante mais velho, divorciado e com três filhos, que por sua vez tinha abandonado de todo a mulher e os filhos para se juntar com ela. Haveria história mais vulgar na vida de uma jovem mulher? Tão vulgar que em privado sempre se dissera que Charlote e o sedutor se tinham juntado, de jungere, verbo físico, tão físico que ia para lá da fisicalidade, pois chegava a jungir os bois. Charlote jungira-se como os bois, diziam eles. Depois disso, Charlote e o divorciado tinham vivido durante dois anos uma paixão ardente. Entre os irmãos também se dizia ardente, sabendo que arder lembra calor, intensidade e chama, ao mesmo tempo que, inevitavelmente, invoca cinza. Pois passados dois anos, segundo eles, a vida de Charlote dera nisso mesmo, cinza. Ela e o amante dela, o homem divorciado, que eles próprios haviam recebido em casa por respeito à irmã, afinal tinham-se separado e a causa estaria à vista, tinha sido o destino dos objectos consumidos pelo fogo, a cinza. A irmã tinha voltado para casa, amachucada, na banalidade dos separados depois de jungidos. Voltara contando um episódio ocorrido numa estrada secundária entre um Fiat e um Jaguar, uma história com demasiadas histórias próprias dos jungidos, pensavam os irmãos, e o pai também. (...)
(...) Vulgaridade das vulgaridades, era a vida de Charlote, aquela que prometera um voo e oferecia a queda. Pois a sua história, comum aos filmes que passam a desoras, e às páginas dos jornais sobre casos de acasalamento, havia tido um continuado. Charlote casara com Francisco Andreu, se bem que Charlote, segundo palavras do irmão Sílvio, pouco tempo depois do casamento, tivesse enroscado dois chifres na cabeça do Andreu. A irmã, com desenvoltura simplória, fora dormir com o divorciado que interpretara a cena na estrada secundária, tendo engendrado um filho dele, e não do marido. A princípio o caso ficara em suspenso. Mas depois tinham feito a prova do ADN e, naturalmente, Francisco Andreu defendera a sua honra, dissera tchau, tchau, Charlote, e abalara porta fora. Segundo eles, essa era a razão por que Charlote vivia sozinha com o filho...
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  Jorge, Lídia. Estuário. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2018, pp 50-52.
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quinta-feira, 5 de julho de 2018



são sonâmbulos que do alto do sonho a
travessam as areias escaldantes
do reguengo. Mas a quem pertence o oá
sis que do linho escorre como um leite
que vai alimentar o fogo da nudez
dos corpos, senão aos nómadas criado
res de paraísos? Crisálidas de
voradoras da própria seda, um pou
co por toda a casa as suas vozes res
soam no interior pueril de noi
te como sons ininteligíveis ao ou
vido mecânico dos progenito
res, alimentam-se da memória am
niótica das galáxias - legí
timos herdeiros das estrelas -, povo
am os hábitos sedimentados na
rarefação dos laços de sangue (...)
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  Justo, Cipriano. Veneza. Porto: Editora Limiar, 1982, pp 54-55.
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quarta-feira, 4 de julho de 2018


                                     A Sombra

   Se o homem fosse uma árvore, seria diferente de todas as restantes, dado que é no centro do seu corpo, e não na extremidade, que se encontram as raízes. Refiro-me, evidentemente, ao coração, esse órgão a partir do qual ganham sentido as outras partes, sendo indubitavelmente a pele o que no corpo corresponde às folhas.
   Talvez pareça insólito trazer dentro de si, escondidas no âmago, as raízes, em lugar de as espetar na terra. De tal modo a esta se associa a ideia de raiz que quase somos compelidos a pensar que o coração é subterrâneo, que entre ele e o que do nosso corpo vemos há uma linha divisória, uma demarcação correspondente àquela outra, horizontal, que habitualmente representa o solo.
   Importa, na verdade, salientar que, se entre a pele e o coração, como entre as folhas e a raiz, parece ao mesmo tempo haver um traço de união que o tronco, por seu turno, configura, tal união, que além do mais esconde o intransponível  hiato que os separa, é menos real do que aparente. Pense-se no fosso que nos jardins zoológicos há entre as feras e as pessoas e ter-se-á uma ideia desse abismo.
   O que é que neste caso são as feras - a pele ou o coração - é que é talvez difícil de dizer. De tal modo às vezes é frondoso o coração que toda a pele se acolhe à sua sombra.
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.  Nava, Luís Miguel. Poesia Completa 1979-1994. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p 167.
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terça-feira, 3 de julho de 2018


                 Os pratos da balança

Por entre as rochas um rapaz, nas mãos levando uma
balança, avança em direcção ao mar. Vai procurar pesá-lo.
Num dos pratos, o mar há-de revolver-se, debater-se,
rebentar, há-de trazer à superfície a força das entranhas e
atrair o céu, há-de-o fazer precipitar-se até com ele se
confundir, e as próprias rochas através das quais o rapaz
segue hão-de pesar no prato ferozmente. Imperturbável,
o rapaz colocará no outro prato o seu sorriso.


Nava, Luís Miguel. Poesia Completa 1979-1994. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p 137.
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