terça-feira, 17 de julho de 2018


   Havia no corpo de Margarida uma modificação relacionada com o ser. "Os narcisos não podem ser santos?!", interroga-se ela. Ao mesmo tempo que se sentia dominada por semelhante inquietude, reparou que, perto dos cinquenta anos, a sua infância adquirira o máximo de conhecimento, perdia-se no jogo, como nunca.
(...)
   O cálamo da caligrafia está sobre a mesa, a pena da ave, e o barco de um de vós, marinheiro; o cálamo não escreverá mais, a pena não servirá mais para pena de voo. (...) Ele escrevia as cartas a quem não sabia ler (...).
   A origem das letras é a luz, cuja fonte é a pena que se inscreve sobre a tábua do Grande Destino.
   A origem das letras é uma luz que emana da ponta de uma pena, inscrevendo pela primeira vez traços na tábua do Grande Destino.
   Cada letra é um Anjo criado para glorificar (...) Época em que tenho receio não sei bem de quê, de algo que não se precisa. Hoje passei um dia delicioso, não tanto a escrever, a transcrever ideias, mas a copiar textos, a escrever cartas, a ter um contacto menos profundo com a escrita. De qualquer forma, foi delicioso, aqueceu-me o coração por baixo do xaile branco, com o broche. Tanto mais que os meus sonhos se têm encadeado em série e, assim vistos (têm) sido estranhos, e provavelmente com um sentido.
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  Llansol, Maria Gabriela. Numerosas Linhas, Livro de Horas III. Porto: Assírio & Alvim, 2013, pp 178-185.
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