Sou ingrata para com a casa de Jodoigne, que me parece agora uma prisão. Eu não desejo ficar aqui para escrever uma obra, nenhuma obra é mais preciosa do que viver, e os livros são sempre gavetas, memórias onde arrecado o meu destino,
que há-de ir para a frente,
como o cavalo de que sou a companheira.
Ter vindo de Portugal deixa-me de luto, e eu escrevo para exorcisar minha melancolia, minha dedicação a um objecto perdido. Se eu pudesse ser uma beguina sobre o Cabo Espichel, visitar a horas alegres todos os entes que conheci, passear com Luís M. sob os revérberos da praia ______________
experimentar o mar nos pés descalços, e poder voltar para as nossas pequenas casas sobre as arcadas, sabendo que poderemos ver sempre, quando quisermos, ou disso tivermos real necessidade, nossa mãe, Ana de Peñalosa.
Persegue-se hoje a ideia de que não passo de um criador limitado.
Não sei se desejo viver em Portugal; pondo de parte os profundos laços afectivos que me ligam a algumas pessoas, e à pessoa-língua, que cresce quando eu estou longe, desejaria eu viver num país tão marcado pela existência de desníveis sociais? Choca-me o ódio.
(...)
Vim aqui para não ouvir falar de mim mesma e ficar na companhia dos mais humildes seres. Compreendi claramente que uma pequena imortalidade depois da morte nada tem a ver com a profunda absorção no conhecimento com sentido, que eu procuro. Voltei desta viagem a Portugal, mas tinha um pouco de receio de ficar-me nela.
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Llansol, Maria Gabriela. Numerosas Linhas, Livro de Horas III. Porto: Assírio & Alvim, 2013, pp 115-117.
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