segunda-feira, 26 de julho de 2021


Quando ele se aproximou, puxou-me contra si e abraçou-me finalmente. Incapaz de reagir, mordi com força as palavras que tinha para lhe dizer. Quanto mais ele me apertava, mais elas se atropelavam para me entupirem a boca como amargos que restavam das minhas desilusões. Tola. Julgava eu que aprendera a não fraquejar à primeira; que a minha pele calejada, espessada pelo tempo e pelos golpes sofridos, saíra mais resistente do que uma couraça de vidro capaz de se estilhaçar ao primeiro sinal de mimo.
- Por onde tens andado? - perguntei-lhe com meiguice. - Fizeste-me tanta falta.
Ele riu-se como um garoto e, no seu modo atrapalhado, libertou-se do abraço. Depois, deu um passo atrás para me mirar de alto a baixo, mas, claro, era Peppino, e, ao reparar nos meus olhos, fez logo a leitura.
(...)
Podia ser tudo verdade, mas não tive qualquer dúvida de que a razão principal só tinha que ver comigo. Depois, lá me contou que passara em Pitigliano não havia muito tempo e fora aí que soubera onde me podia encontrar. Queria ver com os próprios olhos o que era feito de mim...
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 João Pinto Coelho. Um tempo a fingir. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2020, pp 340-341.
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segunda-feira, 19 de julho de 2021


La Colección DiezyNueve nos acerca a la poesía que se está escribiendo en estos momentos fuera de España. A través de la selección de diecinueve de las principales voces de cada panorama literario, diez pertenecientes a mujeres y nueve a hombres, nos adentramos en otras realidades, ritmos y formas que nos abren la mirada hacia un mundo literario tan metafórico como real y tan amplio como diverso. Aquí encontrarás poesía para pensarnos y para pensar al otro; poesía para construirnos más allá de los límites fronterizos.
Inauguramos esta nueva colección dirigida por las poetas Isabel Miguel y Luisa García-Ochoa Roldán con una exquisita selección de algunas de las principales voces literarias de Portugal, el país vecino al que tanto amamos y del que tanto queremos aprender. Han sido cómplices en esta edición el ensayista y activista cultural João Mendes Rosa y la escritora y traductora Montserrat Villar González.
Gracias a todos los autores y traductores que se han sumado a este gran proyecto con nosotras. No podemos estar más orgullosas del resultado
El 1 de agosto estará disponible en librerías 💚
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sábado, 17 de julho de 2021


   De repente, ouvi um bater de asas. O pássaro entrara na gruta, mas faltou-lhe o céu e enlouqueceu. Esbarrava contra as paredes e, a cada embate, teimava em não cair morto. A certa altura conformou-se e pousou num recesso da caverna, a uns metros de nós. Não sei se Cosimo deu por ele; não sei sequer se sentiu os meus dedos a afagarem o seu cabelo transpirado.
- Que aconteceu há bocado?- perguntei. Como não me respondeu, insisti: - Que é que tens?
   Então, levantou-se de repente:
-Tenho fome.
   A seguir, vestiu-se e saiu da gruta. Quando voltou, nem dez minutos depois, dobrara a camisola pelo peito, formando uma bolsa que enchera de bagas. Então, ajoelhou-se e despejou-as à minha frente.
- Mirtilos?- arrisquei.
   Ele riu-se_
- Groselhas.- Levei à boca uma mancheia delas e devo ter feito má cara porque se riu outra vez: - Azedas? Não te importes, matam-te a fome e a sede.
   Era verdade. Passado o arrepio, eram até comestíveis, e por isso sentámo-nos ao lado um do outro a debicar as bagas até ao fim da manhã.
   Restariam muito poucas, quando ele teve coragem:
- Vou-me embora, Aninna. Parto amanhã.
(...) Não havia lugar para mais, muito menos para um epílogo sem Cosimo nos meus braços. "Vou embora, Annina" não era só um adeus, era uma presságio de morte. Bastava-me olhar para ele para saber que era para sempre.
- A guerra chegou aqui - disse-me. Depois, riu-se da ironia:- Vou combater pelo Duce (...) e foi a partir daí que a cidade entrou na guerra.
   Também é vaga a memória dos dias que se seguiram. Das noites, não. Com a partida de Cosimo, regressaram os pesadelos, todos eles devastadores e todos no mesmo cenário.
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 João Pinto Coelho. Um tempo a fingir. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2020, pp 224-226.
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domingo, 11 de julho de 2021










(Conheci Angélique Ionatos em 2011, quando a cantora se deslocou a Lisboa para um concerto no Grande Auditório da Gulbenkian. Eu tinha acabado de publicar um livro com o seu nome no título. Após alguns contactos, consegui que alguém da organização proporcionasse o nosso encontro. Foi um momento alto: eu estava com alguns amigos, após o concerto ela veio ter connosco. Era uma mulher de estatura pequena, que, apesar disso, inundava o local onde estava. Simpatiquíssima: vinha ao longe e já vinha sorrindo para nós. Ficou surpreendida com a história do meu livro, que tive o cuidado de lhe oferecer, e eu dela fiquei com as palavras escritas na foto um: "Para o Victor, carinhosamente (em grego)... ", e fiquei também com a sua música e com o modo soberbo como cantava os grandes poetas. Foi com estupefação que soube do seu falecimento, após doença prolongada, no dia 7 de julho de 2021. Ionatos era uma das vozes maiores da diaspora grega, nascera a 22 de junho de 1954 e saira da Grécia após a instauração da Ditadura dos Coronéis. Fica aqui uma pequena homenagem que lhe presto: traduzi para português uns excertos de uma estrevista sua de 2014. O texto, como é óbvio, contém as habituais marcas de oralidade, que decidi não suprimir. Este texto mostra igualmente que A.I. era não só uma cantora imensa, mas também uma mulher inteligentíssima.)

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Entrevista de Angélique Ionatos ao “Triton” em 6 de março de 2014.

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 Os sonhos chamarão a si o tempo da sua vingança

 O papel de um artista é testemunhar o seu tempo. Parece-me impensável ser grega e não prestar atenção à situação em que o país se encontra. Não reconheço Atenas quando lá vou. Na província as pessoas ainda conseguem escapar, mais ou menos. Nas grandes cidades é assustador, quero dizer, eu não reconheço nada da Atenas da minha infância. Quando era pequena, por exemplo, jamais vi pessoas a chafurdar nos caixotes do lixo, jamais!, e os gregos eram também célebres pela sua hospitalidade, pelo modo como se ocupavam dos seus vizinhos, era qualquer coisa interiorizada o facto das pessoas jamais serem indiferentes à infelicidade dos outros, mas agora tornámo-nos numa metrópole assustadora. A mendicidade atingiu um nível assustador e vejo o rosto das pessoas quando se apanha o metro ou na rua: as pessoas estão ausentes, estão alhures, é o que chamamos a estratégia do choque, ou seja, depois de levarem golpe após golpe há uma apatia que se instala e então cada um pergunta-se: bem, como vou fazer para pagar a renda da casa ou para comer? Não se pode deixar de falar de tudo isto! E depois sinto-me encolerizada, encolerizada porque vejo o governo grego – que fala em nome do povo – mas vemos que todos eles estão empanturrados de alimentos… É indecente! São autenticamente uns bobos, uns palhaços, como lhes chamam os jovens. Não quero dizer – também – que isto é exclusivo da Grécia, ela é um membro gangrenado da Europa, mas penso que essa gangrena vai alastrar por todo o corpo: essa espécie de repartição verdadeiramente escandalosa das riquezas entre os países, entre os ricos e os pobres, não pode continuar, é uma coisa da ordem da mais extrema indecência, da obscenidade – penso que vivemos num mundo obsceno! É verdade que sou uma música e, por vezes, digo-me mesmo: mas para que serve fazer arte? Fazer música observando tudo isto? Mas… penso que serve!  Era René Char, esse grande poeta, que dizia: “Neste mundo não há um lugar para a Beleza, todo o lugar é para a Beleza!”, e tenho a impressão de que fazendo algo de Belo se suprime a feiura do mundo e damos coragem – sobretudo aos jovens – para não se deixarem ficar em silêncio, para que não se fiquem pela submissão. A resistência abraça-se de forma diferente: cada um resiste à sua maneira! Mas penso que o grande drama é que esquecemos sempre que somos demasiado efémeros, não compreendo como é que num mero instante que se pode viver se pode ter a  sensação de que se é eterno, isto é, se as pessoas tivessem quotidianamente consciência da sua precaridade, do lado efémero do ser humano, talvez a vida fosse diferente, contudo, as pessoas afastam a morte como algo que não existe; nós vivemos em sociedades onde a morte não tem direito de cidadania, portanto, forçosamente esquecemos que esquecendo a morte esquecemos igualmente a vida, já que é a morte que dá sentido à vida; e agora, que envelheço, não há um único dia em que não me diga: eis que estou do outro lado!, é uma contagem ao invés!, já vivi muito mais do que aquilo que me resta viver, todavia, será que isso tem importância? Todas as coisas acabam por se tornar muito relativas, em todo o caso eu sinto-as assim!

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Um sopro de liberdade

 Quando se trata de música, tenho alguma dificuldade em falar disso, porque não podemos ser ao mesmo tempo parte e juiz; não podemos fazer música e falarmos dela. Faz já quase quarenta anos que faço espetáculos: fiz duos, fiz trios, fiz espetáculos com pequenas orquestras de câmara e penso que o encontro com a Katerine * foi muito belo e importante, foi a primeira vez que trabalhei com uma grega numa forma de duo, e o facto de estar com uma jovem grega e de termos as duas as mesmas preocupações foi também uma outra porta que se abriu no meu trabalho. Penso que quando trabalho com gente mais nova do que eu, há o desejo e a frescura que me toca e traz também o desejo de lhes dar uma dada liberdade de ser, gosto muito de dar lugar aos outros de se exprimirem musicalmente – naqueles que confio! -, a partir do momento em que eu tomo a decisão de trabalhar com alguém é porque amo esse alguém e confio nele, de facto eu tenho necessidade de uma pessoa, de um instrumento… e de perguntar a essa pessoa: o que é que isso te evoca?, o que é que gostarias de fazer com isso?, agrada-me imenso. Não me interessa brilhar em múltiplas pistas, prefiro um modo de me despojar, não tenho interesse em ser o centro só porque é a minha música, prefiro que os outros obtenham prazer. Dantes eu era muito perfecionista: aquela nota que não tinha saído bem, etc., mas depois tudo isso passou – graças a Deus! -, hoje tenho mais vontade de me alegrar, de usufruir de maior liberdade.

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* A cantora refere-se aqui a Katerine Fotinaki com quem gravou alguns temas.

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quinta-feira, 8 de julho de 2021


Deuxième Huissier:
(...)
Qu'est-ce que c'est que ça? "Hadrien VII".
Rolfe:
Un roman.
Deuxième Huisser, qui empile des livres pris aux rayonnages :
Ah, vous êtes écrivain?
(...)
Premier huisser:
C'est sur quoi, ce roman?
Rolfe:
C'est l'histoire d'un homme qui a commis la folle et stupide erreur d'être en avance sur son époque.
Premier huisseur:
Ça vaut quelque chose?
Rolfe:
C'est un chef-d'oeuvre et, en conséquence, cela ne vaut probablement pas deux sous.
Les deux huissiers échangent un regard d' incompréhension.
En même temps, il est possible que cela n'ait pas de prix.
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 Peter Luke. Hadrien II. Paris: Éditions Gallimard, 1970, pp 119-190 (Adapté de l'anglais par Jean-Louis Curtis).
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Nota: a peça "Adriano VII" de Peter Luke baseia-se no romance homónimo de Frédéric William Rolfe, bem como em alguns aspetos da vida deste autor.
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quarta-feira, 7 de julho de 2021

 



A partir de un verso de Martha Asunción Alonso


Por no poder tocar la madrugada,
porque no supe ser más que quererlo.
Por no poder tenerte la mirada,
fue todo por no ser capaz de hacerlo.
Por no encontrar refugio en la nevada
aunque no hubo nevada. Por perderlo.
Porque en mis manos nunca estará ayer
y verte y no saberlo detener.


  Rodrigo Olay. Vieja Escuela. Madrid: Ediciones Rialp, 2021, p 85.
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segunda-feira, 5 de julho de 2021


Sou livre para estar só
e acariciar tua sombra
e ouvir a melodia que soa
rascante pelo corpo elétrico do dia

Para nada dizer, para contemplar
o sonho que viaja luminoso
por todo o meu corpo, fluido como os outros
misturado ao suor, ao sangue, à saliva,
à lágrima, contido no ar que inspiro e expiro
ansiosa por sorver o que restar de vida

Sou livre para me entregar
ao orgasmo solitário, único
sol a preencher a manhã

livre para o delírio e o desvanecimento
o desmaio da realidade, o sonho labiríntico
a que me agarro, onde me perco, onde me acho
onde te busco ardente e sem descanso
o desejo latejando nas entranhas
como criatura autônoma sem limites
num incêndio raso sobre a cama.


  Luíza Mendes Furia. Vênus em Escorpião. São Paulo: Editora Patuá, 2016, p 31.
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domingo, 4 de julho de 2021


E os primeiros aromas saem no fumo da chaminé.
Cheira a pinha queimada
cheira a urze e a mel.
Espreito pela vidraça, a primeira a contar do lado direito
da cozinha,
que virada a nascente
reproduz fielmente o amanhecer.
E vejo a mesa larga coberta com uma toalha já cansada e gasta.
Sobre a mesa
o meu
pão quente a fumegar
um pratinho de azeita e
o leite a escaldar com a fervura da manhã.

Um suco púrpura dos bagos da romã escorre pela toalha.
E os frutos secos espalham-se em sementeira.
Uma abelha impaciente sobrevoa o festim.
E ouvem-se na Casa as primeiras vozes da manhã.


  Teresa Alvarez. Curta Metragem. Fafe: Editora Labirinto, 2020, p 35.
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