De repente, ouvi um bater de asas. O pássaro entrara na gruta, mas faltou-lhe o céu e enlouqueceu. Esbarrava contra as paredes e, a cada embate, teimava em não cair morto. A certa altura conformou-se e pousou num recesso da caverna, a uns metros de nós. Não sei se Cosimo deu por ele; não sei sequer se sentiu os meus dedos a afagarem o seu cabelo transpirado.
- Que aconteceu há bocado?- perguntei. Como não me respondeu, insisti: - Que é que tens?
Então, levantou-se de repente:
-Tenho fome.
A seguir, vestiu-se e saiu da gruta. Quando voltou, nem dez minutos depois, dobrara a camisola pelo peito, formando uma bolsa que enchera de bagas. Então, ajoelhou-se e despejou-as à minha frente.
- Mirtilos?- arrisquei.
Ele riu-se_
- Groselhas.- Levei à boca uma mancheia delas e devo ter feito má cara porque se riu outra vez: - Azedas? Não te importes, matam-te a fome e a sede.
Era verdade. Passado o arrepio, eram até comestíveis, e por isso sentámo-nos ao lado um do outro a debicar as bagas até ao fim da manhã.
Restariam muito poucas, quando ele teve coragem:
- Vou-me embora, Aninna. Parto amanhã.
(...) Não havia lugar para mais, muito menos para um epílogo sem Cosimo nos meus braços. "Vou embora, Annina" não era só um adeus, era uma presságio de morte. Bastava-me olhar para ele para saber que era para sempre.
- A guerra chegou aqui - disse-me. Depois, riu-se da ironia:- Vou combater pelo Duce (...) e foi a partir daí que a cidade entrou na guerra.
Também é vaga a memória dos dias que se seguiram. Das noites, não. Com a partida de Cosimo, regressaram os pesadelos, todos eles devastadores e todos no mesmo cenário.
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João Pinto Coelho. Um tempo a fingir. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2020, pp 224-226.
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