sexta-feira, 13 de julho de 2018


   Os objectos dispersos, fora do seu contexto, não são os mesmos. São outros que já não insinuam nada ou muito pouco. Que já não vibram.
(...) a escrita circula permanentemente, em mim e no Augusto, isto é, o real nosso que perfeitamente conhecemos e se desenvolve sem medida. Incluindo sempre o inesperado e o impossível. Quanto mais a casa está deserta, mais o horizonte é distante e, felizmente, sempre povoado. (...) Tinha intenção, há instantes, de ler um livro (que não os meus), mas basta-me senti-lo ao lado para que a sua força me faça, por meu lado, escrever; é um circuito perfeitamente definido, cheio de histórias e destino. (...) Parece-me que é com os olhos que ouço sempre primeiro as palavras, com seu traço, cor, som, memória, melancolia..
(...)
   Retomo o que disse atrás; sem melancolia, eu nunca poderia escrever. Foi pela nostalgia que cheguei às palavras, à notação verbal de um panorama. (...) Quando olho, para escrever, à primeira vista tudo me parece inacessível, irrepresentado, ou só representado para mim, por meus meios. Segue-se uma espécie de decifração fácil e imediata, em que escrever depois de ver desemboca na comunicação.
   Fora pela nostalgia que chegara às palavras.
(...)
   Como é possível que o tempo tenha assim passado e desfeito as silhuetas tangíveis dos corpos? Como é possível que eu não tenha compreendido verdadeiramente o sentido do que minha avó Maria dizia, que na morte somos todos iguais?
(...) Vivo com animais, mas quanto a pessoas sinto-me numa ilha deserta. (...) Evidentemente que não gosto menos do silêncio, mas gostaria de poder abordar naturalmente os outros, trocar com eles alguns fósforos, já não digo velas, para iluminar este caminho de implicações imprevisíveis e desconhecidas...
(...)
   Depois de ter escrito, quarta e quinta, creio, da semana passada, alguns textos verdadeiros, sinto-me outra vez sem coragem. Aqui, o isolamento é total; percorro a minha torre de marfim com a sensação de que os anos me trouxeram, progressivamente, para fora da vida. Só em certas ocasiões o caudal dessa mesma vida parece encontrar-me, servir-se de mim para manifestar suas consequências mais longínquas e profundas, ficar algum tempo e afastar-se de novo. De facto, tal caudal, rio, existe; mas eu, devo ou não rodear-me de gente?
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 Llansol, Maria Gabriela. Numerosas Linhas, Livro de Horas III. Porto: Assírio & Alvim, 2013, pp 34-45.
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