quarta-feira, 11 de julho de 2018


"E de súbito senti que a perfeição que eu vivia junto de uma mulher bela e completa, que a vida me tinha posto à beira das ondas num mês de Setembro, preenchia a minha vida domesticada, civilizada, mas não a minha vida selvagem. Impossível explicar por palavras. Para que compreendas, a minha vida precisava de fidelidade e de infidelidade. A fidelidade era vivida com ela, a tua irmã Charlote, a infidelidade, de que também precisava, não tinha rosto, era vivida com vários outros rostos sobrepostos, e eu queria as duas, a fidelidade e a infidelidade. Sentia prazer nesse risco, em viver uma assimetria desconfortável, entre a vida fiel a Charlote e a vida dissoluta com quem calhava. Sentia prazer em tentar equilibrar com dificuldade a vida selvagem e a vida pura, sabendo perigosamente que as duas residiam no mesmo peito. E nesse balanço desajustado, por incrível que te pareça, ou não, existia equilíbrio. Mas a partir de certa altura passou a haver um desequilíbrio insustentável. O lugar da fidelidade continuava a ocupar um espaço tão desmesurado que não permitia o espaço da infidelidade, e eu não queria desperdiçar as hipóteses de vida que me permitiam esta segunda parte. Em suma, eu teria desejado guardar num cofre, fechado à chave, o amor que sentia pela tua irmã para me entregar à rédea solta da infidelidade. Porque, ao contrário que estarás a pensar neste instante, eu amava-a" - disse Amadeu Lima. "Entre mim e ela surgia um relâmpago que não acontecia com mais ninguém. Estabelecia-se entre nós uma alegria pura por efeito dela. (...) Agora conto-te a ti, que tens apenas vinte e sete anos, para que não esqueças que no interior do coração humano existem mistérios que são inexplicáveis, tão inexplicáveis quanto na escala teológica são os mistérios de Deus."
(...) "É possível que durante instantes tenha desejado que ela não assistisse ao desmoronamento da imagem que havia feito de mim (...). Depois dessa noite, tudo foi horrível. O enfrentamento, a incapacidade de me explicar, o meu arrependimento, a impossibilidade de haver perdão num caso semelhante. (..) Mas talvez o que mais me tenha magoado, e me fez compreender que o nosso caso havia sido estranhamente singular, foi saber, passado algum tempo, que o filho de Charlote Galeano tinha o meu rosto.(...) Tenho avistado o David várias vezes ao longo destes anos. Parece-se comigo muito mais do que os outros meus filhos. Não tenho mais nada que te possa explicar. Ultimamente, várias vezes tentei contar a verdade a Charlote, nunca foi possível. Ela tem receio de que eu a convença com uma mentira, quando eu só quero contar a verdade. Faz bem, tem os seu motivos... "
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  Jorge, Lídia. Estuário. Alfragide: Publicações Dom Quixote, 2018, pp 267-270.
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