A Sombra
Se o homem fosse uma árvore, seria diferente de todas as restantes, dado que é no centro do seu corpo, e não na extremidade, que se encontram as raízes. Refiro-me, evidentemente, ao coração, esse órgão a partir do qual ganham sentido as outras partes, sendo indubitavelmente a pele o que no corpo corresponde às folhas.
Talvez pareça insólito trazer dentro de si, escondidas no âmago, as raízes, em lugar de as espetar na terra. De tal modo a esta se associa a ideia de raiz que quase somos compelidos a pensar que o coração é subterrâneo, que entre ele e o que do nosso corpo vemos há uma linha divisória, uma demarcação correspondente àquela outra, horizontal, que habitualmente representa o solo.
Importa, na verdade, salientar que, se entre a pele e o coração, como entre as folhas e a raiz, parece ao mesmo tempo haver um traço de união que o tronco, por seu turno, configura, tal união, que além do mais esconde o intransponível hiato que os separa, é menos real do que aparente. Pense-se no fosso que nos jardins zoológicos há entre as feras e as pessoas e ter-se-á uma ideia desse abismo.
O que é que neste caso são as feras - a pele ou o coração - é que é talvez difícil de dizer. De tal modo às vezes é frondoso o coração que toda a pele se acolhe à sua sombra.
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. Nava, Luís Miguel. Poesia Completa 1979-1994. Lisboa: Publicações Dom Quixote, 2002, p 167.
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