terça-feira, 23 de abril de 2024


Para não se confundir a constituição republicana com a democrática (como costuma acontecer), é preciso observar-se o seguinte. As formas de um Estado (civitas) podem classificar-se segundo a diferença das pessoas que possuem o supremo poder do Estado, ou segundo o modo de governar o povo, seja quem for o seu governante; a primeira chama-se efectivamente a forma da soberania (forma imperis) e só há três formas possíveis, a saber, a soberania é possuída por um só, ou por alguns que entre si se religam, ou por todos conjuntamente, formando a sociedade civil (autocracia, aristocracia e democracia; o poder do príncipe, da nobreza e do povo). A segunda é a forma de governo (forma regiminis) e refere-se ao modo, baseado na constituição (no acto da vontade geral pela qual a massa se torna um povo), como o Estado faz uso da plenitude do seu poder: neste sentido, a constituição é ou republicana, ou despótica. O republicanismo é o princípio político da separação do poder executivo (governo)do legislativo; o despotismo é o princípio da execução arbitrária pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu, por conseguinte, a vontade pública é manejada pelo governante como sua vontade privada. – Das três formas de Estado, a democracia é, no sentido próprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque funda um poder executivo em que todos decidem sobre e, em todo o caso, também contra um (que, por conseguinte, não dá o seu consentimento), portanto, todos, sem no entanto serem todos, decidem – o que é uma contradição da vontade geral consigo mesma e com a liberdade.

    Toda a forma de governo que não seja representativa é, em termos estritos, uma não-forma, porque o legislador não pode ser ao mesmo tempo executor da sua vontade numa e mesma pessoa (como também a universal da premissa maior num silogismo não pode ser ao mesmo tempo a subsunção do particular na premissa menor); e, embora as duas outras constituições políticas sejam sempre defeituosas porque proporcionam espaço a um tal modo de governo, é nelas ao menos possível que adoptem um modo de governo conforme com o espírito de um sistema representativo como, por exemplo, Frederico II ao dizer que ele era simplesmente o primeiro servidor do Estado, ao passo que a constituição democrática torna isso impossível porque todos querem ser o soberano. – Pode, pois, dizer-se: quanto mais reduzido é o pessoal do poder estatal (o número de dirigentes), tanto maior é a representação dos mesmos, tanto mais a constituição política se harmoniza com a possibilidade do republicanismo e pode esperar que, por fim, a ele chegue mediante reformas graduais. Por tal razão, chegar a esta constituição plenamente jurídica é mais difícil na aristocracia do que na monarquia e é impossível na democracia, a não ser mediante uma revolução violenta. Mas ao povo interessa mais, sem comparação, o modo de governo do que a forma de Estado (embora tenha também muita importância a sua maior ou menor adequação àquele fim). Ao modo de governo que deve ser conforme à ideia de direito pertence o sistema representativo, o único em que é possível um modo de governo republicano e sem o qual todo o governo é despótico e violento (seja qual for a sua constituição). – Nenhuma das denominadas repúblicas antigas conheceu este sistema e tiveram de dissolver-se efectivamente no despotismo, que, sob o poder supremo de um só, é ainda o mais suportável de todos os despotismos.

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Immanuel Kant. A Paz Perpétua (Segunda secção, Segunda Parte do Primeiro Artigo), in “A Paz Perpétua e Outros Opúsculos”. Lisboa: Edições 70, 2008, pp 140-142