segunda-feira, 13 de abril de 2020


                           Retrato de rapaz


Sabes que os mapas só nos servem
quando já temos caminho
e que nada se descobre da procura,
mas ainda assim soubeste largar-te
ao mundo sem causa,
intuir as relíquias e forçar o esquecimento.
Ainda assim o acaso e a lonjura,
como aves que pousam juntas num terraço:
com hora marcada debicam as penas,
raspam a terra dos pequenos vasos
e lamentam o desejo de voar pela terra inteira.
Olhamos lábios e olhos
como se a beleza só florisse à luz da melancolia,
e é assim que me dedicas a pureza,
um resto sem préstimo,
a graça de um lastro cansado,
sem esforço.
É assim que me fazes depositário prematuro
da memória,
guardião dos velhos retratos
e de boa parte dos fantasmas
que te habitaram.
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 Madalena, Emanuel. Sob a forma do silêncio. Porto, Porto Editora, 2019, p 68.
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