.
Excerto de uma carta de Clea para o narrador:
.
Um artista não vive a sua vida pessoal como nós fazemos, oculta-a, obrigando-nos a penetrar nos seus livros se desejamos conhecer a verdadeira fonte dos seus sentimentos. Para além de todas as suas preocupações sexuais, sociais, religiosas, etc. (todas as abstracções que constituem a matéria-prima que alimenta as segregações do cérebro), está simplesmente um homem torturado para além do que é possível suportar, pela falta de ternura que existe no mundo.
E tudo isto me reconduz à minha própria pessoa, porque eu também mudei de maneira muito curiosa. Esta vida altiva e independente que levei transformou-se em alguma coisa de árido e vazio. Já não corresponde às minhas necessidades mais profundas. Algures, nas profundidades do meu ser, creio que a maré começou a mudar. Não sei porquê, mas é para si, meu querido amigo, que nestes últimos tempos os meus pensamentos se voltam com mais frequência. Posso ser franca? Seria possível uma amizade nesta encosta do amor? Uma amizade que pudéssemos procurar e descobrir? Não falo de amor - a palavra, com todas as convenções odiosas que invoca, tornou-se-me odiosa. Mas não será possível alcançar uma amizade que seja ainda mais profunda, infinitamente mais profunda, para além das palavras e das ideias? Será possível encontrar um ser humano a quem guardemos fidelidade, não no corpo (deixo isso aos padres) mas no espírito culposo?
.
.
Lawrence Durrel. Quarteto de Alexandria, Vol. 1: Justine. Lisboa: Editora Ulisseia, 3ª Edição, pp 272-273.
.
.
.