terça-feira, 25 de setembro de 2018


   Um sentimento de vergonha acompanhava-o sempre. Tinha vergonha da sua fraqueza, das suas hesitações, da sua timidez e da sua origem humilde. Enxertou-as com sincera convicção na árvore genealógica dos Canossa, rica em condes e imperadores, Infelizmente, os seus modos traíam-no. Brigava com toda a gente, recusava-se a pagar à velha Catarina o mês em que ela estivera doente. Tratava os outros com aspereza. Não se portava melhor com os grandes senhores.
   Uma vez chegou a ofender Leonardo da Vinci sem razão alguma. (...) As pessoas tinham medo do Mestre. Chamavam-lhe "terrível". O papa Leão X disse que o temia porque era rude e selvagem. O papa Clemente VII considerava-o um ruão sem educação alguma, sempre pronto a sentar-se sem ser convidado a fazê-lo, e por isso preferia estar de pé na sua presença. Durante uma discussão com Júlio II, irritado, pôs o chapéu na cabeça. Ele mesmo o contou a Daniello da Volterre.
   - Já é muito bom não me ter mandado cortar a cabeça - disse, rindo-se.
   Certa vez deu-se uma cena engraçada, como nas comédias do cardeal de Bibbiena. Foi em Bolonha, onde o papa se encontrou com o Mestre após a sua fuga de Roma. Júlio II levantou o seu báculo de marfim e gritou:
   - Em vez de seres tu a correr atrás de mim, sou eu que corro atrás de ti.
   Um prelado que estava presente, no intuito de acalmar a ira do papa, tentou justificar o comportamento do Mestre pela falta de bom senso e de tacto.
   Só então o papa verdadeiramente se encolerizou.
   - Como te atreves a ofender o nosso artista? Fora daqui! - gritou e indicou-lhe a porta.
   Mas o pobre prelado não se moveu, estava como que pregado ao chão.
   - Ponham-no fora - gritou o papa aos camareiros - e apliquem-lhe umas bastonadas.
(...) A maior vergonha, porém, era causada pela sua fealdade. Envergonhava-se de ter o rosto deformado.
   - Ao lado do meu rosto feio, o rosto daquele que amo é ainda mais belo.
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  Stryjkowski, Julian. Tommaso del Cavaliere. Lisboa: Edições Cotovia, 1990, pp 50-51.
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