Escutar a própria sede é interpretar o desejo que há em nós. E, nesse sentido, importa certamente aprofundar o sentido desta palavra. Na parte final do Banquete de Platão surge uma interpretação do desejo que há de marcar a história do Ocidente até aos nossos dias. . O desejo é aí perspetivado como falta e tem a aceção de carência. (...) Como tal, ele não é um estado de posse, mas de desejo incessante da verdade, da beleza e da bondade que lhe faltam. Quando amamos o que se passa? Ocorre isto: o amor deseja os bens que não tem em si. A vocação do que ama é assim uma vocação mendicante: enceta os seus caminhos no desconforto das mãos vazias; dorme ao desabrigo; veste-se de forma andrajosa e insuficiente como um mendigo. Apenas recebeu os recursos para atrair e ser atraído, isto é, recebeu a sede. E assim vive. Por isso, temos de distinguir o desejo de uma mera necessidade, que se acalma e satisfaz na posse de um objeto. Não confundamos desejo com necessidades. O desejo é uma falta nunca completamente satisfeita, é uma tensão, uma ferida sempre aberta, uma exposição interminável à alteridade. O desejo é uma aspiração que nos transcende e que não determina, como a necessidade, um termo e um fim. A necessidade é uma carência circunstancial do próprio sujeito. O infinito do desejo é desejo de infinito.
Na contemporaneidade, Simone Weil revisita o discurso platónico do desejo em chave mística. Ela repete que o desejo é uma enganadora armadilha quando se liga a objetos finitos, pois estes se tornam depressa em ídolos, erguidos no lugar do absoluto. Mas garante que o desejo é bom enquanto contém uma energia que se deixa orientar para o alto, para o divino. Nesse sentido, ela propõe uma educação do desejo, que nos torne vigilantes em relação às tentações de substituição, ensinando-nos, sim, a permanecer na falta, na incompletude, no vazio e na espera.
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Mendonça, José Tolentino. Elogio da Sede. Lisboa: Quetzal Editores, 2018, pp 53-54.
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