sexta-feira, 29 de março de 2019



                           As redes do meu coração já não estão para peixes

Acabo de sair da estação com um bilhete de metro entre os dedos - como se fosse a radiografia de uma menina com mariposas de metal no estômago - faz frio e as árvores entram lentamente nas caixas automáticas para se protegerem do inverno. Dizem que aqui não se recenseou nenhum anjo ex guerrilheiro, nenhuma flor morreu aqui por causa de uma qualquer chuva de abelhas e magnólias. Tanto faz, decidi tomar fôlego por dois segundos, esquecer que a realidade é um pássaro encerrado num espelho, um incessante pingar de suas penas no hemisfério azul do coração. Esta manhã acordei com o teu nome entre os lábios (ainda que pense que o não falarmos é a linguagem que melhor nos define), sorrindo como uma carta recém aberta. A madrugada, como um animal indeciso, acabou por nos reconhecer como dois pássaros. É certo, que são eles, e não outra coisa qualquer, que se escondem por entre os intervalos da chuva ao raiar do dia. São eles, e não outra coisa qualquer, o que desce pelas escalas dos termómetros para nos trazer as recordações. Sim, é certo, tenho um problema com as aves em geral, acho-as inquietantes quando chove e creio que, se dependesse delas, voariam apenas em primeira classe. Sei que escrevem, em silêncio, partituras de mel contra as árvores e que as flores lhes provocam angústia porque têm o mesmo pensamento que os astrofísicos quando se apaixonam. Nada disto tem que ver com o objeto deste poema que era - enorme loucura! - descrever uma prisão ou, quiçá, chorar como um menino, encher-me de cafeína e crisântemos solitários. Tu bem sabes, os guarda-chuvas são os habitantes mais sinceros desta cidade a preto e branco. Louvadas sejam as lágrimas de substituição nas estações de serviço do meu coração. Louvadas as estrelas que acenam na noite quando ainda o céu não fixou a sua engrenagem e se parece com uma armadilha para cometas e meteoritos. Tu bem o sabes, não se habita uma cidade, mas apenas a solidão das suas gentes, tu bem o sabes, um pássaro não é um pássaro, senão um invento da nossa necessidade de voar sobre a prisão dos teus lábios. Como podes ver, estou reduzido a pó e as redes do meu coração já não estão para peixes.
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  Santiago, Nilton. El equipaje del ángel. Madrid: Visor Libros, 2014, pp 31-32 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
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