terça-feira, 26 de março de 2019


      Descarnação

Até aos trinta anos tens
a cara que Deus te deu. Depois
tens a cara que mereces. É uma promessa
de ironia, uma sentença
sem recurso.

É-te assim dito:
estás entregue ao labor íntimo
do que comes, ao número de horas que dormes,
àquilo que fazes e sobretudo
àquilo em que pensas. Deus
(perdoa-lhe a fraqueza)
tolera-nos enquanto somos jovens,
ampara-nos, alisa-nos
a fronte após um desgosto, talvez
nos ame, mas deixa-nos
sozinhos quando a beleza
é terreno pouco firme

e assiste de longe
ao desafio temerário que lançou
a cada filho.

Sabes então que o rosto é uma flor
plantada no escuro, uma corola
tenra, redonda e impenetrável
que desabrocha e se abre
com as pétalas lisas e brilhantes, ou
confusas e despenteadas,
conforme a força
e a direcção do vento.
.
.
  Faria, Andreia C. Alegria para o fim do mundo. Porto: Porto Editora, 2019, pp 129-130.
.
.
.