domingo, 22 de setembro de 2019



                     A Inveja como uma das Belas Artes

   Se uma mentira não é suficiente para caraterizar um mitómano ou sequer um mentiroso, do mesmo modo um momento de inveja não chega para revelar um invejoso. A perturbação invejosa enforma de dados aspetos que a individuam e a distinguem das outras perturbações da personalidade. Numa primeira abordagem, podemos afirmar que o invejoso partilha com o sociopata, com o perverso narcísico e com o falso-self o facto de todos derivarem da aprendizagem e do adquirido, ao contrário do psicopata que releva da ordem do inato, contudo, quer uns quer outro são altamente resistentes a qualquer tipo de terapia. As experiências feitas, nos últimos anos, com crianças psicopatas têm revelado resultados altamente desencorajadores, aliás, como é que se trata uma perturbação da personalidade? Não se trata! Quanto muito estabelecem-se alguns parâmetros, nem que sejam intimidatórios, para se conseguir uma conformidade mínima com o meio, são conhecidos, por exemplo, o horror à perda da imagem e à justiça que algumas destas perturbações têm. Um segundo aspeto da perturbação invejosa é que ela apenas ocorre no território da semelhança: o motorista inveja o motorista, o poeta inveja o poeta, o desenhador inveja o desenhador. É evidente que um motorista pode invejar um advogado que tem uma luxuosa moradia, um automóvel topo de gama, que passa sistematicamente férias nos mais luxuosos lugares, mas, para que essa inveja ocorra houve um deslocamento do invejoso para a esfera do económico onde o invejado circula e eis-nos de novo no território da semelhança. Um terceiro aspeto tem a ver com a relação pulsão-ação - o invejoso é alguém que sabe esperar: sendo as suas armas preferidas o boato, o ardil e mecanismos afins, o invejoso precisa de tempo para montar a sua teia contra o invejado ao contrário do psicopata, que, precisando de se libertar quanto antes da sua tensão interior, tem na ação a boia súbita para a sua autorregulação (Cf. Albert Eiguer, “Pequeno Tratados das Perversões Morais”, Lisboa, Climepsi, 1999). O invejoso não é só alguém que sabe esperar, como é também alguém cuja capciosa manipulação do discurso é mais difícil de desmontar, porque mais subtil e mais bem encenada: o invejoso é um artista da representação, acima mesmo do charme encantatório do perverso narcísico ou do atabalhoamento do discurso do psicopata que não consegue resistir a uma pressão demasiado forte e duradora (Cf. todos os trabalhos de Robert Hare sobre o discurso dos psicopatas). Estamos, pois, longe do retrato clássico do invejoso: lábio inferior retesado ou quase inexistente, olhar afunilado sobre a presa, malares repuxados e tensos… O invejoso “atualizou-se”: é afável, parcimonioso ou expansivo é simpático, circula afavelmente nos seus diversos grupos: não é só ele que é um artista, é a inveja que se tornou uma das Belas Artes e eis a quarta caraterística da perturbação invejosa: a compulsiva necessidade de menorizar o outro. Quando Vitor Frankl, preso num campo de concentração e sujeito às mais hediondas condições de subsistência, diz invejar os prisioneiros que apresentam uma peça mais de vestuário, não estamos perante uma personalidade invejosa, mas ante um desejo circunstancial não submetido ao ciclo da repetibilidade; quando Cioran diz que inveja e despreza todo aquele que tendo “alcançado a sua medida” quer ainda ultrapassar-se (Cf. Cahiers, p 89), estamos nitidamente perante uma manifestação de desprezo e nada mais. A perturbação invejosa pode antes ser encontrada em muitas outras obras, veja-se, por exemplo, a magistral descrição do relacionamento do capitão Monti com o tenente Angustina (In “O deserto dos Tátaros” de Dino Buzzati, Marcador, pp 142-148). Um quinto aspeto, prende-se exatamente com o desejo que o invejoso tem na menorização, ou até mesmo na implacável destruição, do outro: o invejoso observa, espia mesmo, corrói, espalha subtilmente o boato – sua arma preferida – conspira, enfim, tudo o que possa conduzir à eliminação do invejado, e aqui a inveja distingue-se da admiração já que nesta visa-se sempre o engrandecimento do outro, o que admira só se sacia quando os seus ídolos se engrandecem, ou seja, é precisamente o percurso oposto da inveja. Numa penúltima caraterística, poder-se-á dizer que a inveja é uma paixão  que circula simultaneamente no território da ética e do conhecimento: o invejoso tem um deturpado conhecimento de si, apreende-se como “maior, mais grandioso, mais valioso” do que na realidade é, e a esta cognição errada virá corresponder o sentimento de se sentir injustiçado: a sociedade, ou o agrupamento social em que se insere, “deve-lhe algo que se recusa a entregar-lhe e que anda a esbanjar com outro(s) que ele sabe inferior(es) a si”: urge, pois, apurar a vingança! Torná-la uma arte, uma das Belas Artes. Por fim, e num sétimo ponto, diremos tão-só que estando a inveja relacionada com o adquirido e com a aprendizagem, ela varia na relação direta da competitividade dos grupos e das sociedades, dito de outro modo: o inveja proliferará onde a competição aumentar e a cooperação diminuir.
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© Victor Oliveira Mateus (Inédito)
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