domingo, 6 de outubro de 2019



    O livro alípio de Josyane de Jesus-Bergey apresenta-se-nos, num primeiro momento, como uma cartografia de uma procura e como a interiorização de um enraizamento. Contudo, quer uma quer outro não se subsumem a uma qualquer itinerância de aspeto geográfico ou topográfico. O périplo levado a cabo pela poeta situa-se antes naquilo a que Simone Weil tão bem desenvolveu no seu L’ enracinement – uma procura de raízes que não se limita ao fisicismo do aqui, mas inclui igualmente outras dimensões: afetos (p 76, p 86), sistemas de valores (p 30, p 38, p 74) códigos linguísticos (p 22, p 24), tomadas de consciência (p 46, p 54), etc.
  A referência a Miguel Torga na epígrafe do livro (p 12), nome previamente encumeado por Nuno Júdice em nota introdutória (pp 5-6), atira-nos de imediato para uma quádrupla tecedura, cujos elos irrompem também neste livro de Josyane de Jesus-Bergey: a ligação à terra (p 28, p 48, p 72); a procura de uma autenticidade no modo de ir sendo (p 22, p 80, p 90)); a acuidade ao humano nas suas múltiplas dimensões e atividades, sobretudo a do trabalho (p 42, p 54, o penúltimo verso, p 68);  e, finalmente, o comprometimento com o mundo dos afetos ( p 58, sobretudo a última estrofe do poema). Mas não é apenas Torga que espreita por detrás desta poesia: outras vozes, sem que saibamos como, assomam à porta destes versos: Pascoaes, Aquilino, Ferreira de Castro e até um certo Camilo. No entanto, urge enfatizar que o tangenciar Pascoaes tem apenas a ver com a envolvência terrosa da paisagem (“Sou como tu/ uma transmontana/ de xisto e granito” p 72) e não com a dimensão ontológica da saudade: em Josyane de Jesus-Bergey a saudade é de passado, de um passado irremediavelmente perdido e que apenas pode ser vivenciado por imaginação e conjetura ( E tu permaneces aqui/ imóvel/ de braços abertos/ nos teus olhos reflectem-se/ o vale/ as suas vinhas/(…)/ Tudo se conjuga/ para me contar// As minhas raízes/ A minha vida/ Este país do meu pai!” p 90).
   Associada a esta ânsia de recriar, na mente, um dada dimensão perdida da temporalidade (o passado), está associada a necessidade de entender o seu presente, de entender o sentido do seu estar-aqui, e isto poderia tentar-nos a enquadrar esta procura numa aventura contingente e individualista, tentação até passível de ser suportada por alguns poemas ( p 20, p 80, p 82), todavia, a passagem do individual ao universal transpassa todo o livro, aliás, essa universalidade aparece muitas vezes até com um caráter fusional (“Já não há estrangeiro/ a sombra apagou-se/ e ouço-te” p 28; “os odores misturados/ do teu país ao meu” p 64) e não é só esta busca que serve de paradigma às outras que constantemente empreendemos é também a própria espacialidade, que pelo desalento e pela nostalgia da caminhante acaba por se tornar coisa imprecisa e de somenos valor (“ Estou aqui, Alípio/ entre duas fronteiras” p 66). Por tudo isto, poder-se-á dizer que a procura da poeta, bem como a interpretação, muitas vezes dolorosamente interiorizada, que dela faz, não só enformam os versos que lhe aparecem, mas também revelam essa zona de mistério e de obscuridade que essa sua procura, ou melhor, que a nossa procura, não conseguirá jamais colmatar: “ desta longa história/ permanece algo de obscuro no fundo do poema/ eu caminho… “
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© Victor Oliveira Mateus
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