O
livro alípio de Josyane de
Jesus-Bergey apresenta-se-nos, num primeiro momento, como uma cartografia de
uma procura e como a interiorização de um enraizamento. Contudo, quer uma quer
outro não se subsumem a uma qualquer itinerância de aspeto geográfico ou
topográfico. O périplo levado a cabo pela poeta situa-se antes naquilo a que
Simone Weil tão bem desenvolveu no seu L’
enracinement – uma procura de raízes que não se limita ao fisicismo do
aqui, mas inclui igualmente outras dimensões: afetos (p 76, p 86), sistemas de
valores (p 30, p 38, p 74) códigos linguísticos (p 22, p 24), tomadas de
consciência (p 46, p 54), etc.
A
referência a Miguel Torga na epígrafe do livro (p 12), nome previamente
encumeado por Nuno Júdice em nota introdutória (pp 5-6), atira-nos de imediato
para uma quádrupla tecedura, cujos elos irrompem também neste livro de Josyane
de Jesus-Bergey: a ligação à terra (p 28, p 48, p 72); a procura de uma
autenticidade no modo de ir sendo (p 22, p 80, p 90)); a acuidade ao humano nas
suas múltiplas dimensões e atividades, sobretudo a do trabalho (p 42, p 54, o
penúltimo verso, p 68); e, finalmente, o
comprometimento com o mundo dos afetos ( p 58, sobretudo a última estrofe do
poema). Mas não é apenas Torga que espreita por detrás desta poesia: outras
vozes, sem que saibamos como, assomam à porta destes versos: Pascoaes,
Aquilino, Ferreira de Castro e até um certo Camilo. No entanto, urge enfatizar
que o tangenciar Pascoaes tem apenas a ver com a envolvência terrosa da
paisagem (“Sou como tu/ uma transmontana/ de xisto e granito” p 72) e não com a
dimensão ontológica da saudade: em Josyane de Jesus-Bergey a saudade é de
passado, de um passado irremediavelmente perdido e que apenas pode ser
vivenciado por imaginação e conjetura ( E tu permaneces aqui/ imóvel/ de braços
abertos/ nos teus olhos reflectem-se/ o vale/ as suas vinhas/(…)/ Tudo se
conjuga/ para me contar// As minhas raízes/ A minha vida/ Este país do meu
pai!” p 90).
Associada
a esta ânsia de recriar, na mente, um dada dimensão perdida da temporalidade (o
passado), está associada a necessidade de entender o seu presente, de entender
o sentido do seu estar-aqui, e isto poderia tentar-nos a enquadrar esta procura
numa aventura contingente e individualista, tentação até passível de ser
suportada por alguns poemas ( p 20, p 80, p 82), todavia, a passagem do
individual ao universal transpassa todo o livro, aliás, essa universalidade
aparece muitas vezes até com um caráter fusional (“Já não há estrangeiro/ a
sombra apagou-se/ e ouço-te” p 28; “os odores misturados/ do teu país ao meu” p
64) e não é só esta busca que serve de paradigma às outras que constantemente
empreendemos é também a própria espacialidade, que pelo desalento e pela
nostalgia da caminhante acaba por se tornar coisa imprecisa e de somenos valor
(“ Estou aqui, Alípio/ entre duas fronteiras” p 66). Por tudo isto, poder-se-á
dizer que a procura da poeta, bem como a interpretação, muitas vezes
dolorosamente interiorizada, que dela faz, não só enformam os versos que lhe
aparecem, mas também revelam essa zona de mistério e de obscuridade que essa
sua procura, ou melhor, que a nossa procura, não conseguirá jamais colmatar: “
desta longa história/ permanece algo de obscuro no fundo do poema/ eu caminho…
“
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© Victor Oliveira Mateus
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