sábado, 9 de novembro de 2019

A apresentação do livro Travessia de Licínia Quitério decorreu na Biblioteca Camões (ao Chiado, Lisboa) no dia 9 de novembro de 2019. Segue o texto de apresentação da obra:
.
.
.
      Algumas notas sobre o livro Travessia de Licínia Quitério
.

    Travessia é a nova obra de Licínia Quitério. O livro apresenta-se-nos como um conjunto de poemas, predominantemente longos, com versos livres, ou heterométricos, sendo a estrutura poemática sempre monostrófica e sem qualquer preocupação de rima. Neste sentido, ao nível formal, poder-se-á dizer que Travessia se insere no que tem sido a produção que se tem seguido ao Modernismo e ao Pós-Modernismo. Contudo, se quanto à forma este livro foge às formas fixas, já ao nível semântico há uma deliberada opção por todo léxico proveniente da tradição: o vento, as falésias, o coração, o mar, as casas, etc.  O motivo desta conjugação, desta enxertia estilística, não se prende com deliberações circunstanciais ou de uma dada tentativa de inserção em qualquer “escola” literária, mas antes com a necessidade de articular um cismar poético com um sentido que se pretende coerente, bem como com uma certa eficácia do dito junto do leitor.
   A Travessia de que nos fala o presente livro de Licínia Quitério não se restringe ao caminhar através do mundo físico, embora também o seja; não é um termo, por conseguinte, com um sentido unívoco: pluriforme e plurissignificativa esta Travessia vai-se desdobrando, ante os olhos do leitor, em várias vertentes:
a)     é uma travessia no próprio discurso poético, com as palavras e pelas palavras: “(…) as barcas/ pejadas de palavras,/ pediriam um vento de feição”;
b)     é uma travessia no próprio modo como apreendemos o real: “O nosso olhar/ com o real não se conforma./ Busca a ilusão, dizes,/ eu digo, o infinito”;
c)     é também uma travessia simultaneamente existencial e ontológica, onde se joga a presença e o destino do homem: “Donde vens, de que terra te perdeste,/ que procuras no meio do nada/ que recado me trazes”:
d)     é uma travessia cronológica e histórica, onde a duração e a temporalidade jogam uma cartada fundamental: “No tempo de seres forte, não havia/ cavalo que não domasses/(…) que te amedrontasse/(…) Fizeste filhos a perpetuarem/ a tua beleza, a tua força.”; “Envelhecidos de abandono e ferrugem/ os caminhos já não levam nem trazem”;
Constatamos, assim, que este poemário de Licínia Quitério, pretende retirar o ser humano do ruído e do turbilhão que no hoje o envolvem e, escalpelizando o seu ir sendo aqui, devolve-lo a uma lucidez que se tem vindo a esbater, inserindo-o igualmente na sua condição essencial de ser de passagem: apesar de estatutos polvilhados de arrogância e ambições desmedidas, o ser humano não é mais do que um ser de passagem, um Caminhante numa mera Travessia: “ De passagem vamos,/ neste trem de ferro,/ a engolir paisagens, casas.”
   Os símbolos predominantes nesta poesia encontram-se implicados naquilo que somos e na tarefa a empreender, e neste território as palavras e a Poesia assumem um estatuto privilegiado de mediação: “sem rumo as barcas, / pejadas de palavras, / pediriam um vento de feição”; “ Num verso longo é que se joga a vida./ Um verso , longo e branco/ com sabor a caminhos/ a lonjuras.”;  “A chuva cai/ e eu sou uma frase/ que experimenta voar.”; “Caminhos que é preciso dizer”. Se o hoje é, como já disse, marcado pelo ruído e por uma alienação turbilhonar, muitas vezes consentida (“Andamos apressados na colheita dos dias,/ não vá o sol queimar a pele dos frutos,/ (…) Temos medo de chegar tarde”), então, a Travessia tem de ser levada a cabo com o auxílio de muitos fatores coadjuvantes: a memória, a circunspeção, o não nos deixarmos fixar no desalento e na solidão e ousarmos sempre a persistência (“Esqueceste tantos nomes, tantos rostos,/ mas aprendeste a vastidão da praia,/(…) É hora de empunhares o arco,/ seres a flecha. A pedra,/ Sozinho vais./ Ninguém pode ser a tua estrada”). Vemos, pois, se ninguém pode fazer a minha Travessia por mim, se ela se me apresenta, por vezes, eivada de escolhos, não irá ser, no entanto,  isso que me impedirá de a fazer, de, após a queda, levantar-me e retomar o meu percurso, ou seja, neste livro de Licínia Quitério o sentido da ousadia e da persistência superam sempre os momentos de nostalgia e de desalento: “ Fica pequeno o coração/ mas a nossa casa continua firme,/ a nossa pele ao abrigo das feras.”; “Anima-te,/ Se não sabes cantar,/ compõe sílaba a sílaba/ pequeninas palavras de rimar./(…) Amargura não serve, podes apagar.”; “Ninguém me deu o livro das verdades,/mas eu vou. “ Esta visão remete-nos invariavelmente para os matizes sócio-culturais e económicos que ressumam, aqui e ali, na poesia de Licínia Quitério: 1º uma visão positiva do estatuto da mulher: “Só na boca das mulheres/ a água se detém/à espera de ser leite e ser criança”; “Tudo é possível nos dias da penumbra/ se uma mulher vestida de vermelho/ pensa na infância e a desenha.”; 2º um questionamento da arbitrariedade da norma: “ De noite caminham os proscritos da alegria/ e os recusados do banquete.”; “São vultos contra a luz./ Têm dentro pessoas que procuram/ o outro lado, sempre o outro lado/ do muro, do bosque, da praia,/ do nada que às vezes dizem vida,”; 3º esta desmistificação da norma, não se limita tão-só ao trazer a mulher para o centro, ela invade, em certos momentos, subtemas bem específicos como os debates atuais em torno da questão do género e o desmascarar de estereótipos relacionados com a questão da orientação sexual: “Homens nascidos de mulheres./ Homens amantes de mulheres./ Homens amantes de outros homens,/ Todos iguais na hora de chegar,/ na hora de partir.”, esta igualdade no diferente acaba por se enquadrar nos debates atuais em torno das teses da neurobiologia de Jacques Balthazart, aliás, como também a abordagem da questão do género e do feminino entronca em obras de filósofos como Foucault, Judith Butler, Thomas Laqueur (Cf. “Nous” de Tristan Garcia. Paris: Grasset: 2016, pp 134-145). Retomo as minhas palavras para a Licínia, aquando de um nosso telefonema: “ É interessante como tu mantendo todo um léxico que é da tradição, acabas por desembocar em questões extremamente atuais em torno das quais circula muito da filosofia francesa contemporânea”. Penso que foi mais ou menos isto que lhe disse!
   Um outro aspeto fundamental desta Travessia é que ela se nos apresenta não como uma imagem da linearidade, mas antes como um caminho disruptivo e, muitas vezes, de etapas pouco claras no momento e a poeta serve-se do suplício de Tântalo para ilustrar esta ideia: “O relevo do dorso a suportar o céu,/ a beber nuvens./ Convida o homem a subir./ Ele vai, cai, rasga-se nas pedras,/ ergue-se, sempre./ Chegado ao cume, desdobra bandeiras./ Grita:/ Isto é meu, este sou eu./ A montanha deixa rolar uma pedra./ É o seu modo de medir o tempo.”. Este excerto tem, todavia, dois níveis de leitura: se um por lado assoma a crítica social, onde o eu se afirma através da posse (“Isto é meu, este sou eu.”), por outro, aponta-se para algo mais radical, essa Travessia onde o homem vai, cai, rasga-se nas pedras e sempre se reergue. Este “reerguer após a queda” aparece nesta poesia com duas particularidades: é um momento da ordem natural, mas é também um Imperativo Ético, onde a Justiça e a Liberdade jogam uma cartada fundamental, atente-se ao desdobrar bandeiras, por tudo isto disse já que a ousadia e a esperança superam nesta escrita os momentos de desalento, creio podermos dizer que estamos perante um movimento ascendente rumo a uma dimensão específica da temporalidade: o futuro, esta Travessia incorpora toda a experiência vivida pela poeta e deixa-se dizer através das palavras, ou melhor, através da Poesia: “Dá-me um novo alfabeto/ e eu te darei meu livro de aventuras.”, mas neste livro de aventuras, neste falar da Travessia, o passado tem apenas uma função instrumental, jamais preponderante. E aqui a poesia de Licínia Quitério aproxima-se da filosofia de Miguel Real, e não apenas da sua filosofia, mas também da sua obra romanesca: se lermos romances como As memórias secretas da Rainha Dona Amélia ou Cadáveres às costas encontraremos, algumas vezes, a expressão “Não fiques preso a cadáveres”. Este primado de um futuro, ainda que desconhecido na sua essência, ainda que indistinto no seu germe, é o que regenera a ação do homem, é o que dá sentido à Travessia poética de Licínia Quitério.
.


                                              Victor Oliveira Mateus
.
.
.