sábado, 11 de julho de 2020

Pré-publicação de um artigo que sairá dentro de semanas numa Revista Literária. 
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                                      Victor Oliveira Mateus

     
        Hugo Milhanas Machado: a meticulosa insurreição do verbo


O mais recente livro de Hugo Milhanas Machado (Estrela Tambor, Editora Labirinto, 2020) acentua e homogeneíza alguns dos temas e dos procedimentos estilísticos suscetíveis já de ser encontrados em livros seus anteriores. Esta obra está dividida em duas secções: um, Estrela, que integra um grupo de quarenta e quatro sonetos; dois, Tambor, composta por dez momentos de prosa poética a que o autor chama falas. Convém, no entanto, sublinhar que a opção do poeta pelo soneto se integra num intento mais geral e que é uma das traves mestras deste seu livro: o ir jogando com a tradição literária e, simultaneamente, o escangalhar dessa mesma tradição, vejamos: Milhanas Machado recusa, de modo deliberado, o soneto petrarquiano, bem como o soneto shakespeariano, com tudo o que isso implica de escansão e esquemas rimáticos, opta pelo soneto monostrófico todo ele em verso livre, já que é esse procedimento que melhor serve os seus propósitos: “Ia estranho, obscuras formas, soneto carnaval” (16:14, nas citações referentes a todos os livros o primeiro número será sempre relativo à página e os seguintes aos versos); “Tens o muro do catorze, a piscina da tradição” (24:1); “Domingo contigo ou a bomba no soneto” (50:9); “O segredo desfez o soneto, que a fibra da fala é a praia da frase, e assim monta e organiza os números de luz” (59:2-4).
Parece-me curial traçar um paralelismo entre o desígnio visado por Estrela Tambor e aquele outro que John E. Jackson assinala como subjacente ao projeto poético de Rimbaud (Cf. “la poésie et son autre”, pp 43-75), onde, para este especialista da poesia moderna, o poeta francês acaba levando à cena uma riquíssima Ópera Fabulosa em que a música e o teatro desempenham funções estruturantes, então, e pelo que aqui nos ocupa, poder-se-á dizer que HMM monta, não uma Ópera Fabulosa, mas uma Arquitetura Meticulosa cujas variáveis organizativas são: o lúdico-desportivo, a música (também) e o existencial incluindo este, por sua vez, o afetivo e a dimensão do trabalho. Contudo, toda esta arquitetura visa, e opera, um solo específico – o da escrita.
Como se disse acima, alguns destes elementos encontravam-se já esparsos em obras anteriores, embora ao serviço de grelhas concetuais e paradigmas diferentes dos de Estrela Tambor, exemplos: “acho que tento de longe tocar/ e que debaixo das estrelas aqui chegássemos/ acho que uma guitarra me vinha bem/ um bocado de música fosse um bocado/ de ti mas as partes de que mais gosto” ( In As Junções, 71:13-17); “O poema diz/ fecharam janelas em quartos/ e fomos nós” ( In Onde fingimos dormir como nos campismos, 71:7-10); “Eu querer só quero uma beca/ do teu coração/ a mais composta” (In Onde fingimos dormir como nos campismos, 76:12-15); “Meu corpo afinal é o mesmo/ e recordo doutro poema/ em que noutro poema eu tentava/ navios de barro à hora de jantar” ( In Supertubos, Poemas 2005-2015, 92:13-16). Se é possível, então, estabelecer convergências semânticas e estilísticas com livros anteriores de HMM, não restam também quaisquer dúvidas, que todos esses conceitos e processos se encontram agora ao serviço de um projeto distinto dos anteriores, como o poeta diz mesmo na Introdução da obra: “Faz a frase grande, e então prossegue. Lança letras e diz: faz luz chata, vem, é só a gente a continuar. A fola daqui é torta e violenta e também por isso merece o horizonte” (In Estrela Tambor, 7:26-29). Assim, estamos, com este livro, instalados em pleno território da escrita com toda a conflitualidade e horizontes a ela inerentes e, num regresso a John E. Jackson, faz todo o sentido traçar uma analogia com o que este ensaísta conclui acerca de Celan; “(…) existe (…) uma grelha verbal, uma barreira ou um filtro de palavras entre o sujeito e o ser. (…) a linguagem é menos um meio para diferenciar – para separar – do que para definir. Ou melhor, a linguagem (…) irrompe como um meio que distingue para definir” (In Op. Cit. p 97). Estamos, pois, neste momento, na posse de algumas das principais premissas que nos permitem compreender o principal da já citada arquitetura que Milhanas Machado se autopropõe levar a cabo com o presente livro.
Ao nível do sentido, Estrela Tambor dá-nos, na sua urdidura, aspetos curiosos e inusitados na poesia portuguesa contemporânea: a) a estreita convizinhança entre o jargão e/ou o mero linguajar de irreverentes  agrupamentos sociais específicos, aliás, muito mais esbatido aqui do que em livros anteriores deste autor (“nos bailes malucos” 16:7; “roupas beras” 38:12; “Estilo marado” 41:10; “buchas para depois lembrar.” 44:14) e um lirismo, que, muitas vezes, se tenta ocultar no corpo do poema e, em outras, afronta o leitor, como por exemplo através de diminutivos (“Pedimos o santo dos grandes guerreiros,/ Travar batalha na incandescência pirata/ Meu amor, intuir contigo a serrania.” 43:12-14 – seguindo de perto Martine Broda no seu L’amour du nom, e para o que aqui nos interessa, não importa se o “amor” mencionado por HMM no último verso do soneto da página 43 se refere à mulher amada, à escrita ou à missão que a si se impôs;  “ Essa recordação tomada nas coisinhas”, 51:11); b) um fusional (propositado) que opera no coração dos textos através de palavras e expressões provenientes de vários territórios do humano: o laboral, a escrita, o afetivo, o lúdico, etc.: “Curvavam longe, bravos patinadores/ Nessa alta nuvem de gelo e papel,/ Flor em punho o corpo despido,/ Imitam forte a universidade do cometa./ Com eles a defesa de uma semântica,/ Roladores de linha no pulso da página/ A curva vai e vem como o caminho./ Do saquinho da língua, país do osso naval/ Guardar os tesouros para saber quando cantar”” (39:1-10). Este modo de trazer o vivencial, nas suas múltiplas vertentes, para dentro da poesia e com isso questionar a tradição de modo a acenar com uma gramática outra, assemelha-se ao que Wordsworth fez, no seu tempo, com a natureza: “A Wordsworth concede-se geralmente o mérito de estar na primeira fila daqueles que descobriram e fizeram descobrir à poesia a natureza. O que ele, em primeiro lugar, parece-me, descobriu e fez descobrir sob esse nome, foi um modo de ver a paisagem, de fixar um sketch onde a natureza se apresentava a si própria, se manifestava como uma apresentação de si própria.” (Jacques Rancière, in “La politiques des poètes, pourquoi des poètes en temps de détresse”, p 98). Se neste excerto substituirmos o nome do poeta e as palavras “natureza” e “paisagem” por “escrita”, eis-nos no centro de Estrela Tambor!
Milhanas Machado consegue, neste seu livro, uma arquitetónica pluriforme, que sem perder de vista uma crítica à tradição literária não a escorraça completamente, deixando fugir mesmo, aqui e ali, alguns laivos de um enternecimento saudoso: “Velhos cantos de trazer à fogueira connosco/(…) Nos recantos destas casinhas que de longe habitámos” (24:2-4), contudo, o posicionamento do eu-poético, quer numa perspetiva literária quer mesmo numa outra de tipo ideológico, é bastante claro: o que se visa alcançar, não é um qualquer espartilhar da fala (atente-se à segunda parte do livro!), mas antes um Ser-em-Aberto, ou seja, um horizonte a montar num tempo futuro: “Essa bomba do texto que a gente vem dizer./ O mar batido nas confluências é bonito,/ Começamos o vocabulário dessa borriça/ Que rediz o valor e o transporte no tempo” (46:11-14); “São teus esses escritos que aí ficam/ E nós outra vez na mesma maneira,/ Estrela tambor, campismo a fingir.” (53:12-14).
A uma arquitetura filigranada, a uma poética especular onde os vocábulos surgem, por vezes impetuosamente, desvanecem-se, e logo irrompem mais além, como num enorme caleidoscópio dador de sentidos multiplicáveis e combináveis, a uma estratégia literária deste tipo terá de corresponder igualmente uma conceção do ritmo, da harmonia, distinta das conceções clássica e romântica, assim, penso que a poesia de Hugo Milhanas Machado encaixa perfeitamente num tipo de musicalidade diferente destas duas últimas aqui referidas, aproximando-se de harmonias outras como por exemplo da música atonal, tal como aparece no Pierrot Lunaire de Schoenberg (ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=h4jKtzbc3G0 ) , aliás, será mesmo uma experiência interessante: ler-se alguns sonetos deste livro e escutar-se em seguida a referida peça musical, tornar-se-ia evidente de imediato o que é a meticulosa insurreição do verbo.
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Bibliografia
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. Broda, Martine. L’amour du Nom. Paris: José Corti, 1997.
. Cixoux, Hélène. Aya! Le cri da la littérature. Paris: Éditions Galilée, 2013.
. Derrida, Jacques. Che cos’è la poesia? Coimbra: Colecção Marfim, 2003
. Jackson, John E. La Poésie et son Autre, Essai Sur la Modernité. Paris: José Corti, 1998.
. Machado, Hugo Milhanas. Lisboa: Artefacto, 2010.
. Machado, Hugo Milhanas. Lisboa: Enfermaria 6, 2014.
. Machado, Hugo Milhanas. Supertubos, Poemas 2005-2015. Lisboa: Enfermaria, 6, 2015.
. Machado, Hugo Milhanas. Estrela Tambor. Fafe: Editora Labirinto, 2020.
. Maulpoix, Jean-Michel. La Poésie Malgré Tout. Paris: Mercure de GFrance, 1996.
. Maulpoix, Jean-Michel. Pour un Lyrisme Critique. Paris: José Corte, 2009.
. Rancière, Jacques. La politique des poètes, pourquoi des poètes en temps de détresse. Paris: Albin Michel, 1992.
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