Pré-publicação de um artigo que sairá dentro de semanas numa Revista Literária.
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Victor Oliveira Mateus
Hugo Milhanas Machado: a
meticulosa insurreição do verbo
O
mais recente livro de Hugo Milhanas Machado (Estrela Tambor, Editora
Labirinto, 2020) acentua e homogeneíza alguns dos temas e dos procedimentos
estilísticos suscetíveis já de ser encontrados em livros seus anteriores. Esta
obra está dividida em duas secções: um, Estrela, que integra um grupo de
quarenta e quatro sonetos; dois, Tambor, composta por dez momentos de
prosa poética a que o autor chama falas. Convém, no entanto, sublinhar
que a opção do poeta pelo soneto se integra num intento mais geral e que é uma
das traves mestras deste seu livro: o ir jogando com a tradição literária e,
simultaneamente, o escangalhar dessa mesma tradição, vejamos: Milhanas
Machado recusa, de modo deliberado, o soneto petrarquiano, bem como o soneto
shakespeariano, com tudo o que isso implica de escansão e esquemas rimáticos,
opta pelo soneto monostrófico todo ele em verso livre, já que é esse procedimento
que melhor serve os seus propósitos: “Ia estranho, obscuras formas, soneto
carnaval” (16:14, nas citações referentes a todos os livros o primeiro número
será sempre relativo à página e os seguintes aos versos); “Tens o muro do
catorze, a piscina da tradição” (24:1); “Domingo contigo ou a bomba no soneto”
(50:9); “O segredo desfez o soneto, que a fibra da fala é a praia da frase, e
assim monta e organiza os números de luz” (59:2-4).
Parece-me
curial traçar um paralelismo entre o desígnio visado por Estrela Tambor e
aquele outro que John E. Jackson assinala como subjacente ao projeto poético de
Rimbaud (Cf. “la poésie et son autre”, pp 43-75), onde, para este especialista
da poesia moderna, o poeta francês acaba levando à cena uma riquíssima Ópera
Fabulosa em que a música e o teatro desempenham funções estruturantes, então,
e pelo que aqui nos ocupa, poder-se-á dizer que HMM monta, não uma Ópera
Fabulosa, mas uma Arquitetura Meticulosa cujas variáveis
organizativas são: o lúdico-desportivo, a música (também) e o existencial
incluindo este, por sua vez, o afetivo e a dimensão do trabalho. Contudo, toda
esta arquitetura visa, e opera, um solo específico – o da escrita.
Como
se disse acima, alguns destes elementos encontravam-se já esparsos em obras
anteriores, embora ao serviço de grelhas concetuais e paradigmas diferentes dos
de Estrela Tambor, exemplos: “acho que tento de longe tocar/ e que
debaixo das estrelas aqui chegássemos/ acho que uma guitarra me vinha bem/ um
bocado de música fosse um bocado/ de ti mas as partes de que mais gosto” ( In As
Junções, 71:13-17); “O poema diz/ fecharam janelas em quartos/ e fomos nós”
( In Onde fingimos dormir como nos campismos, 71:7-10); “Eu querer só
quero uma beca/ do teu coração/ a mais composta” (In Onde fingimos dormir
como nos campismos, 76:12-15); “Meu corpo afinal é o mesmo/ e recordo
doutro poema/ em que noutro poema eu tentava/ navios de barro à hora de jantar”
( In Supertubos, Poemas 2005-2015, 92:13-16). Se é possível, então,
estabelecer convergências semânticas e estilísticas com livros anteriores de
HMM, não restam também quaisquer dúvidas, que todos esses conceitos e processos
se encontram agora ao serviço de um projeto distinto dos anteriores, como o
poeta diz mesmo na Introdução da obra: “Faz a frase grande, e então prossegue.
Lança letras e diz: faz luz chata, vem, é só a gente a continuar. A fola daqui
é torta e violenta e também por isso merece o horizonte” (In Estrela Tambor,
7:26-29). Assim, estamos, com este livro, instalados em pleno território da
escrita com toda a conflitualidade e horizontes a ela inerentes e, num regresso
a John E. Jackson, faz todo o sentido traçar uma analogia com o que este
ensaísta conclui acerca de Celan; “(…) existe (…) uma grelha verbal, uma
barreira ou um filtro de palavras entre o sujeito e o ser. (…) a linguagem é
menos um meio para diferenciar – para separar – do que para definir. Ou melhor,
a linguagem (…) irrompe como um meio que distingue para definir” (In Op. Cit. p
97). Estamos, pois, neste momento, na posse de algumas das principais premissas
que nos permitem compreender o principal da já citada arquitetura que Milhanas
Machado se autopropõe levar a cabo com o presente livro.
Ao
nível do sentido, Estrela Tambor dá-nos, na sua urdidura, aspetos
curiosos e inusitados na poesia portuguesa contemporânea: a) a estreita
convizinhança entre o jargão e/ou o mero linguajar de irreverentes agrupamentos sociais específicos, aliás, muito
mais esbatido aqui do que em livros anteriores deste autor (“nos bailes
malucos” 16:7; “roupas beras” 38:12; “Estilo marado” 41:10; “buchas para depois
lembrar.” 44:14) e um lirismo, que, muitas vezes, se tenta ocultar no corpo do
poema e, em outras, afronta o leitor, como por exemplo através de diminutivos (“Pedimos
o santo dos grandes guerreiros,/ Travar batalha na incandescência pirata/ Meu
amor, intuir contigo a serrania.” 43:12-14 – seguindo de perto Martine Broda no
seu L’amour du nom, e para o que aqui nos interessa, não importa se o
“amor” mencionado por HMM no último verso do soneto da página 43 se refere à
mulher amada, à escrita ou à missão que a si se impôs; “ Essa recordação tomada nas coisinhas”,
51:11); b) um fusional (propositado) que opera no coração dos textos através de
palavras e expressões provenientes de vários territórios do humano: o laboral,
a escrita, o afetivo, o lúdico, etc.: “Curvavam longe, bravos patinadores/
Nessa alta nuvem de gelo e papel,/ Flor em punho o corpo despido,/ Imitam forte
a universidade do cometa./ Com eles a defesa de uma semântica,/ Roladores de
linha no pulso da página/ A curva vai e vem como o caminho./ Do saquinho da língua,
país do osso naval/ Guardar os tesouros para saber quando cantar”” (39:1-10). Este
modo de trazer o vivencial, nas suas múltiplas vertentes, para dentro da poesia
e com isso questionar a tradição de modo a acenar com uma gramática outra,
assemelha-se ao que Wordsworth fez, no seu tempo, com a natureza: “A Wordsworth
concede-se geralmente o mérito de estar na primeira fila daqueles que
descobriram e fizeram descobrir à poesia a natureza. O que ele, em primeiro
lugar, parece-me, descobriu e fez descobrir sob esse nome, foi um modo de ver a
paisagem, de fixar um sketch onde a natureza se apresentava a si
própria, se manifestava como uma apresentação de si própria.” (Jacques
Rancière, in “La politiques des poètes, pourquoi des poètes en temps de
détresse”, p 98). Se neste excerto substituirmos o nome do poeta e as palavras
“natureza” e “paisagem” por “escrita”, eis-nos no centro de Estrela Tambor!
Milhanas
Machado consegue, neste seu livro, uma arquitetónica pluriforme, que sem perder
de vista uma crítica à tradição literária não a escorraça completamente,
deixando fugir mesmo, aqui e ali, alguns laivos de um enternecimento saudoso:
“Velhos cantos de trazer à fogueira connosco/(…) Nos recantos destas casinhas
que de longe habitámos” (24:2-4), contudo, o posicionamento do eu-poético, quer
numa perspetiva literária quer mesmo numa outra de tipo ideológico, é bastante
claro: o que se visa alcançar, não é um qualquer espartilhar da fala (atente-se
à segunda parte do livro!), mas antes um Ser-em-Aberto, ou seja, um horizonte a
montar num tempo futuro: “Essa bomba do texto que a gente vem dizer./ O mar
batido nas confluências é bonito,/ Começamos o vocabulário dessa borriça/ Que
rediz o valor e o transporte no tempo” (46:11-14); “São teus esses escritos que
aí ficam/ E nós outra vez na mesma maneira,/ Estrela tambor, campismo a
fingir.” (53:12-14).
A
uma arquitetura filigranada, a uma poética especular onde os vocábulos surgem,
por vezes impetuosamente, desvanecem-se, e logo irrompem mais além, como num
enorme caleidoscópio dador de sentidos multiplicáveis e combináveis, a uma
estratégia literária deste tipo terá de corresponder igualmente uma conceção do
ritmo, da harmonia, distinta das conceções clássica e romântica, assim, penso
que a poesia de Hugo Milhanas Machado encaixa perfeitamente num tipo de
musicalidade diferente destas duas últimas aqui referidas, aproximando-se de harmonias outras como por exemplo da música atonal, tal
como aparece no Pierrot Lunaire de Schoenberg (ver aqui: https://www.youtube.com/watch?v=h4jKtzbc3G0
) , aliás, será
mesmo uma experiência interessante: ler-se alguns sonetos deste livro e
escutar-se em seguida a referida peça musical, tornar-se-ia evidente de
imediato o que é a meticulosa insurreição do verbo.
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Bibliografia
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Broda, Martine. L’amour du Nom. Paris: José Corti, 1997.
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Cixoux, Hélène. Aya! Le cri da la littérature. Paris: Éditions Galilée, 2013.
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Derrida, Jacques. Che cos’è la poesia? Coimbra: Colecção Marfim, 2003
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Jackson, John E. La Poésie et son Autre, Essai Sur la Modernité. Paris:
José Corti, 1998.
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Machado, Hugo Milhanas. Lisboa: Artefacto, 2010.
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Machado, Hugo Milhanas. Lisboa: Enfermaria 6, 2014.
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Machado, Hugo Milhanas. Supertubos, Poemas 2005-2015. Lisboa:
Enfermaria, 6, 2015.
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Machado, Hugo Milhanas. Estrela Tambor. Fafe: Editora Labirinto, 2020.
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Maulpoix, Jean-Michel. La Poésie Malgré Tout. Paris: Mercure de GFrance,
1996.
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Maulpoix, Jean-Michel. Pour un Lyrisme Critique. Paris: José Corte,
2009.
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Rancière, Jacques. La politique des poètes, pourquoi des poètes en temps de
détresse. Paris: Albin Michel, 1992.
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