sexta-feira, 25 de setembro de 2020


    Havia lá um por quem eu me prendi numa verdadeira paixão. Era um Russo. Precisava de procurar o seu nome nos registos da Escola. Quem me poderá dizer o que lhe aconteceu? Tinha uma saúde delicada, extraordinariamente pálido; tinha os cabelos muito louros, algo compridos, os olhos muito azuis; a sua voz era musical, com uma ligeira pronúncia cantante. Uma espécie de poesia emanava de todo o seu ser, que vinha, creio, do facto dele se sentir frágil e desejando fazer-se amar. Era pouco considerado pelos outros colegas e raramente participava nos nossos jogos; para mim, se acaso ele me olhava, eu sentia-me logo envergonhado de me estar a divertir com os outros, e recordo certas brincadeiras onde, surpreendendo o seu olhar, de imediato eu abandonava a dita brincadeira para vir para perto dele. Divertíamo-nos ambos. Cheguei a desejar que o atacassem, para o poder defender. Nas aulas de desenho, onde nos era permitido conversar um pouco, desde que em voz baixa, nós sentávamo-nos um ao lado do outro; ele disse-me, nessa altura, que o seu pai era um sábio grande e muito célebre; não ousei perguntar-lhe pela mãe nem questioná-lo por que razão ele estava em Paris. Um belo dia ele desapareceu, e ninguém me soube dizer se tinha adoecido ou regressado à Rússia; uma espécie de pudor ou de timidez impediu-me de perguntar aos professores que talvez até me tivessem podido esclarecer, e conservei secreta uma das primeiras e mais vivas tristezas da minha vida.
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 Gide, André. Si le grain ne meurt. Paris: Gallimard, 2018, pp 83-84 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
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