quinta-feira, 29 de outubro de 2020


 A Revista Caliban publicou ontem , dia 28 de outubro, o meu Prefácio do livro Em Contramão do poeta brasileiro Álvaro Alves de Faria e do pintor português Rui Cavaleiro ( Coimbra: Editora Palimage, 2020), texto já publicado neste blogue.
 A Amazon tem também já à venda o livro mais recente - em versão Kindle - do poeta e ensaísta brasileiro Alexandre Bonafim, cujo Prólogo/ Ensaio é também de minha autoria. A obra intitula-se O Anjo entre o Deserto e o Não (São Paulo: Editora Lobo Azul, 2020). Segue o dito Prólogo:
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  As figurações do Deserto na Poesia de Alexandre Bonafim

 

                                                   por Victor Oliveira Mateus


   O recente livro de Alexandre Bonafim, Aprendizagem do Deserto, insere-se numa temática que tem, ao longo dos séculos, percorrido a cultura ocidental: o deserto enquanto apelo e fonte de saber e de transmutação do indivíduo que ousa vislumbrá-lo e percorre-lo. Contudo, esta persistência temática nos diversos autores não conduz a uma homogeneização dos resultados, já que cada olhar enforma de uma experiencia vivida específica e de um sistema de valores e de crenças individual; poderemos, eventualmente, encontrar zonas que se tangenciam nas diversas abordagens, mas sem que a originalidade de cada uma delas seja posta em causa.

     O deserto em Alexandre Bonafim apresenta, assim, algumas características fundamentais: encontra-se associado ao dizer ( O deserto diz / com simplicidade / a luz; Dizer o verdadeiro poema/ é sempre ter a língua amputada) ; relaciona-se com a interioridade e a ação (  Dentro dos meus pulsos / um deserto desatou a ira  / dos cavalos selvagens ) ; é apanágio de poucos: daqueles que decidem empreender a aprendizagem referida no titulo deste livro e que ousam trilhar esse caminho incomum ( Visto-me pelo avesso ). O percurso intentado pelo poeta não é coisa pacífica ( Atravesso os campos devastados / as casas em ruínas / a pátria sem nome; Nada no mundo pode abrigar/ essa dor estrangeira/ extraterrena/(…) que perfura meus ossos/ meus sonhos), é, por conseguinte, não só uma senda eivada de obstáculos, por vezes tumultuosos, mas sobretudo uma aprendizagem que recusa todo o tipo de solipsismo; afirma-se antes como um acrescentamento do eu mediante uma relação dialógica com o meio e com o outro, e são estes os dois últimos vetores o fundamental desta Aprendizagem do Deserto, aliás, tal como aparecem em grandes escritores de outras nacionalidades. Escutem-se, por exemplo, as palavras da escritora suíça Annemarie Schwarzenbach: “ Atrás de nós estendia-se a estrada que atravessa a planície desértica e abafada de Teerão (…) Lá em baixo não havia nada, era um vale morto, muito distante do mundo, muito distante de plantas e árvores – em vez delas, só pedras e o calor incandescente que se agarrava ao solo com mil patas.” (1) Ou ainda as do francês Le Clézio: “É lá, no deserto, que Lalla nasceu, ao pé de uma árvore, como o conta Aamma. Lá, na região do grande deserto, o céu é imenso, o horizonte não tem fim. Pois não há nada que detenha a vista.” (2) Ora, são estas as ideias fundamentais que a acuidade e a maestria de Alexandre Bonafim não consentem que se percam na sua cuidada tecedura do Deserto: a analogia deserto/ imensidão; a relação viagem/ aridez a superar; o intercâmbio entre aprendizagem e aprimoramento do ver, do sentir e do entender. A estas instâncias acrescenta ainda o poeta a forte presença do outro: presença desejada, presença amada, mas muitas vezes também presença como germe de mágoa e de desalento. A Aprendizagem do Deserto é, neste livro e indubitavelmente, uma apreensão não resultante de um qualquer delírio ou de uma relação fantasiada, mas de uma constante interiorização obtida através de um complexo e contínuo diálogo com o mundo natural, com a palavra e com o outro, outro esse, por vezes, sob a figuração de uma forte proximidade afetiva.

 Dialeto

 O teu rosto

jorro de uma palavra

na plenitude

de um idioma cego

(…)

O teu rosto

orquídea melancólica

vermelha

como a fuga

dos pássaros

rumo ao sul

    Há, no entanto, neste livro, uma deliberada urdidura da ambiguidade, que remete o leitor, em dadas circunstâncias, para uma interconexão de referentes, como se estivéssemos ante uma encantada casa de espelhos, onde o poeta tanto pode estar a falar de um outro exterior a si, como de si próprio, como ainda do cume absoluto da sua arte: o dizer poético, e caberá ao leitor, recusando todo o tipo de passividade, aceitar o desafio e fazer-se cúmplice desta aventura poética, desta aprendizagem; um exemplo disto a que poderei chamar uma ambiguidade triádica poderá ser encontrada no poema Cigano:

 

 Ele caminha entre o silêncio e o não

 

Nos lábios o veneno

a rosa vermelha

esmagada pela melancolia

 

Ele sempre busca a ardência

a caricia de um delicado algoz

      Outra figuração do deserto bonafiniano pode ser encontrada na sua maleabilidade estrutural. Dito de outro modo, este deserto pode surgir nos momentos mais inesperados e nos contextos mais imperscrutáveis: na infância, no quotidiano, na afetividade (Deitei-me sobre tua pegada// De mim restou-me apenas/ o leve contorno do teu não),  na memória ( Entre meus sonhos/ queima o que foi/ o que não foi/ como a faca/ a perfurar na cicatriz/ uma nova ferida; Um pássaro cego/ voando do nada/ em direção ao nada). Poder-se-á dizer deste deserto o que o filósofo Michael Foessel disse da Noite : “De fait, toutes les eclipses ne sont pas astrales: la nuit peut surgir dans des contextes imprévus et parfois simplement parce que des individus le décident “ (3). Também o deserto de Alexandre Bonafim não se deixa espartilhar por quaisquer mapas ou cartografia, ele é uma instância muito mais lata e rica; é essa parcela do Ser cujo atravessamento, por vezes sofrido, trará ao poeta uma nova e enriquecida aprendizagem do Todo. Este tipo de hermenêutica do deserto pode ser encontrado também em muitos dos poetas portugueses – e foram vários! – que nas últimas décadas poetaram sobre o tema, veja-se o caso de Isabel Cristina Pires (4) – no poema Mapa-Múndi: ( No mapa do mundo/ há um lugar/ onde ninguém  foi./ Dói-nos/ esplendidamente. ) e no poema Este Tempo Rápido do Mundo: ( Este tempo rápido do mundo/ rouba-nos o corpo à dança sem relógio/ e dói no coração comido pelo nada./ Leva-nos consigo para dentro da aridez ). Em ambos os casos, quer a poetisa portuguesa, quer o poeta brasileiro, filiam-se num continuum onde o metapoético se mescla com uma espinhosa aprendizagem, atente-se, a título de exemplo, às palavras de Alexandre Bonafim:

 

Poética

 

Poesia se faz

com arame farpado

contra a carne crua

contra a pele nua

 

     Todavia, apesar dos dois poetas perfilharem uma conceção abrangente do deserto, há na escrita de Cristina Pires um pertinaz modo de olhar uma temporalidade específica e um cosmopolitismo não detetáveis em Bonafim, que opta, antes, por uma sensualidade, um erotismo e um alto lirismo raros na poesia contemporânea escrita em português, aliás, não é por acaso que ele no seu livro utiliza uma única epígrafe: dois versos dessa poeta maior que, no século XX, escreveu em português – Dora Ferreira da Silva.

     A Aprendizagem do Deserto feita pelo poeta, neste livro de Alexandre Bonafim, desemboca num enraizamento quadrifendido do caminhante, simbolizando este o humano no seu passar pelo aqui: o amor-paixão à boa maneira de Stendhal como pode ser visto no poema Abraço; o alcançar de uma regenerada voz poética detetável no poema Conhecimento poético; uma recuperação do corpo (do outro amado? Do texto? De ambos?) como assinala o poema Orgasmo e, finalmente, uma apreensão, em lucidez e verdade, do eu:

 Palavra secreta

 Eu sou o homem dos olhos impuros

mas minha boca pode ver o anjo de seis asas

 

Minha boca pronuncia a inocência

do mais ardiloso vício

 

     Eis a aprendizagem feita através do deserto bonafiniano! Um acolhimento, como acima se disse, feito em clarividência e autenticidade: do amor, do corpo, da poesia e do humano. Este deserto demarca-se, portanto, de tantos outros, como o de Buzzati (5), do qual tudo se esperava e de onde nada de importante vinha, e que mais não era do que uma mera fronteira de ansiosas esperas: de rituais, de envelhecimentos e mortes; o deserto de Alexandre Bonafim é, ao invés, uma mescla de territorialidade e  de experiências passionais e ontológicas,  pelo que se aproxima antes de obras como o romance do anglo-sudanês Jamal Mahjoub (6), onde Gilmour e Tanner atravessam, no sentido norte/ sul, um Sudão inóspito e, por vezes, desértico, mas em que no final o Profeta irrompe ante Tanner ( Como pessoa? Como delírio provocado pela malária?) e lhe revela todo o passado daquela região, bem como a verdadeira natureza do humano, de que aquela gente é uma parca amostra, assim como também Gilmour se acabará revelando como de facto é.

     Em Aprendizagem do Deserto, numa cuidada urdidura de vaivém, num luminoso filigranado de imagens e de conseguidos processos de metaforização, Alexandre  Bonafim dá-nos o fruto do seu apurado cismar poético: uma constelação, onde, como já referi, o amor, o corpo, o humano e a poesia se entrelaçam:

 Constelações

 Não sei o nome oculto

que te ilumina

por debaixo da pele

e acende constelações

no teu íntimo mais secreto

 

Sei que ao te afagar a brisa

de dentro da tua carne

prorrompe o voo de pássaros

alucinados pela luz do verão

  

   (1)  Schwarzenbach, Annemerie. Morte na Pérsia. Lisboa: Edições Tinta-da-china,                  2008, pp 23-24 (Tradução Isabel Castro Silva).

(2)  Clézio. J.M.G. Le. Deserto. Lisboa: Publicações D. Quixote. 1986. P 119 (Tradução Fernanda Botelho).

(3)  Foessel, Michael. La Nuit, vivre sans témoin. Paris: Éditions Autrement, 2017, p 156.

(4)   Pires, Isabel Cristina. Deserto Pintado. Lisboa: Editorial Caminho, 2007.

(5)  Buzzati, Dino. O Deserto dos Tártaros. Barcarena: Marcador Editora, 2014.

(6)  Mahjoub, Jamal. La Navigation du Faiseur de Pluie. Paris: Actes Sud, 1998.

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