As
figurações do Deserto na Poesia de Alexandre Bonafim
por Victor Oliveira Mateus
O recente livro de Alexandre Bonafim, Aprendizagem do Deserto, insere-se numa temática que tem, ao longo dos séculos, percorrido a cultura ocidental: o deserto enquanto apelo e fonte de saber e de transmutação do indivíduo que ousa vislumbrá-lo e percorre-lo. Contudo, esta persistência temática nos diversos autores não conduz a uma homogeneização dos resultados, já que cada olhar enforma de uma experiencia vivida específica e de um sistema de valores e de crenças individual; poderemos, eventualmente, encontrar zonas que se tangenciam nas diversas abordagens, mas sem que a originalidade de cada uma delas seja posta em causa.
O deserto em Alexandre Bonafim apresenta,
assim, algumas características fundamentais: encontra-se associado ao dizer ( O deserto diz / com simplicidade / a luz;
Dizer o verdadeiro poema/ é sempre ter a língua
amputada) ; relaciona-se com a
interioridade e a ação ( Dentro dos meus pulsos / um deserto desatou a
ira / dos cavalos selvagens ) ; é
apanágio de poucos: daqueles que decidem empreender a aprendizagem referida no titulo deste livro e que ousam trilhar
esse caminho incomum ( Visto-me pelo
avesso ). O percurso intentado pelo poeta não é coisa pacífica ( Atravesso os campos devastados / as casas em
ruínas / a pátria sem nome; Nada no
mundo pode abrigar/ essa dor estrangeira/ extraterrena/(…) que perfura meus
ossos/ meus sonhos), é, por conseguinte, não só uma senda eivada de
obstáculos, por vezes tumultuosos, mas sobretudo uma aprendizagem que recusa todo o tipo de solipsismo; afirma-se antes
como um acrescentamento do eu mediante uma relação dialógica com o meio e com o
outro, e são estes os dois últimos vetores o fundamental desta Aprendizagem do Deserto, aliás, tal como
aparecem em grandes escritores de outras nacionalidades. Escutem-se, por
exemplo, as palavras da escritora suíça Annemarie Schwarzenbach: “ Atrás de nós
estendia-se a estrada que atravessa a planície desértica e abafada de Teerão
(…) Lá em baixo não havia nada, era um vale morto, muito distante do mundo,
muito distante de plantas e árvores – em vez delas, só pedras e o calor
incandescente que se agarrava ao solo com mil patas.” (1) Ou ainda as do
francês Le Clézio: “É lá, no deserto, que Lalla nasceu, ao pé de uma árvore,
como o conta Aamma. Lá, na região do grande deserto, o céu é imenso, o
horizonte não tem fim. Pois não há nada que detenha a vista.” (2) Ora, são
estas as ideias fundamentais que a acuidade e a maestria de Alexandre Bonafim
não consentem que se percam na sua cuidada tecedura do Deserto: a analogia deserto/ imensidão; a relação viagem/ aridez a
superar; o intercâmbio entre aprendizagem e aprimoramento do ver, do sentir e
do entender. A estas instâncias acrescenta ainda o poeta a forte presença do
outro: presença desejada, presença amada, mas muitas vezes também presença como
germe de mágoa e de desalento. A Aprendizagem
do Deserto é, neste livro e indubitavelmente, uma apreensão não resultante
de um qualquer delírio ou de uma relação fantasiada, mas de uma constante
interiorização obtida através de um complexo e contínuo diálogo com o mundo
natural, com a palavra e com o outro, outro esse, por vezes, sob a figuração de
uma forte proximidade afetiva.
jorro
de uma palavra
na
plenitude
de
um idioma cego
(…)
O
teu rosto
orquídea
melancólica
vermelha
como
a fuga
dos
pássaros
rumo
ao sul
Nos
lábios o veneno
a
rosa vermelha
esmagada
pela melancolia
Ele
sempre busca a ardência
a
caricia de um delicado algoz
Poética
Poesia se faz
com
arame farpado
contra
a carne crua
contra
a pele nua
A Aprendizagem do Deserto feita pelo poeta,
neste livro de Alexandre Bonafim, desemboca
num enraizamento quadrifendido do caminhante, simbolizando este o humano no seu
passar pelo aqui: o amor-paixão à boa maneira de Stendhal como pode ser visto
no poema Abraço; o alcançar de uma
regenerada voz poética detetável no poema Conhecimento
poético; uma recuperação do corpo (do outro amado? Do texto? De ambos?)
como assinala o poema Orgasmo e,
finalmente, uma apreensão, em lucidez e verdade, do eu:
mas
minha boca pode ver o anjo de seis asas
Minha
boca pronuncia a inocência
do
mais ardiloso vício
Eis
a aprendizagem feita através do deserto bonafiniano! Um acolhimento,
como acima se disse, feito em clarividência e autenticidade: do amor, do corpo,
da poesia e do humano. Este deserto
demarca-se, portanto, de tantos outros, como o de Buzzati (5), do qual tudo se
esperava e de onde nada de importante vinha, e que mais não era do que uma mera
fronteira de ansiosas esperas: de rituais, de envelhecimentos e mortes; o deserto de Alexandre Bonafim é, ao
invés, uma mescla de territorialidade e de
experiências passionais e ontológicas, pelo que se aproxima antes de obras como o
romance do anglo-sudanês Jamal Mahjoub (6), onde Gilmour e Tanner atravessam,
no sentido norte/ sul, um Sudão inóspito e, por vezes, desértico, mas em que no
final o Profeta irrompe ante Tanner ( Como pessoa? Como delírio provocado pela
malária?) e lhe revela todo o passado daquela região, bem como a verdadeira
natureza do humano, de que aquela gente é uma parca amostra, assim como também
Gilmour se acabará revelando como de facto é.
Em Aprendizagem
do Deserto, numa cuidada urdidura de vaivém, num luminoso filigranado de
imagens e de conseguidos processos de metaforização, Alexandre Bonafim dá-nos o fruto do seu apurado cismar
poético: uma constelação, onde, como já referi, o amor, o corpo, o humano e a
poesia se entrelaçam:
que
te ilumina
por
debaixo da pele
e
acende constelações
no
teu íntimo mais secreto
Sei
que ao te afagar a brisa
de
dentro da tua carne
prorrompe
o voo de pássaros
alucinados
pela luz do verão
(2) Clézio. J.M.G. Le. Deserto.
Lisboa: Publicações D. Quixote. 1986. P 119 (Tradução Fernanda Botelho).
(3) Foessel, Michael. La
Nuit, vivre sans témoin. Paris: Éditions Autrement, 2017, p 156.
(4) Pires, Isabel
Cristina. Deserto Pintado. Lisboa:
Editorial Caminho, 2007.
(5) Buzzati, Dino. O
Deserto dos Tártaros. Barcarena: Marcador Editora, 2014.
(6) Mahjoub, Jamal. La
Navigation du Faiseur de Pluie. Paris: Actes Sud, 1998.
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