quinta-feira, 20 de maio de 2021


(...)
Andei guiado por ela, que me amava e coisa e tal,
mas não se casava comigo, eu não tinha eira nem beira,
estava comprometida com o Venceslau,
sapo-bronco que a tinha à trela,
    oferecia-lhe almoços e anéis nas festas populares
    com pirolitos e doce da Teixeira.
(...)

e eu não tinha nada para te dar,
a não ser amor,
não tinha emprego certo,
estava à espera que o "Notícias"
publicasse o anúncio de trabalho ideal.
(...)

Meti-me no fiat 600 sem acertar à primeira
com a chave na ranhura da ignição,
bêbado de pés gelados,
    porque o vinho verde é assim mesmo,
    gela os pés de uma pessoa a partir de horas ilícitas,
até que o carro pegou e dirigi-me para a Boavista,
desci a Rua Nossa Senhora de Fátima
com o cheiro do vazio às três da manhã,
parei numas obras à direita de quem desce,
havia lá mais dois carros,
uns andaimes e umas tábuas de construção.

Estavam ali duas mulheres,
pela cor dos lábios e o tamanho das saias na madrugada
eram da vida,

    como da vida é qualquer um àquela hora.
Vieram na minha direção e eu disse-lhes logo
para entrarem no fiat 600,
uma ao meu lado e a mais alourada no banco de trás,
a do banco da frente de cabelo preto pingão,
cheirava intensamente a perfume extra-doce
     e disse-me que eu já não conseguia endireitar
     o meu padrão de vida,
enquanto a outra, no banco de trás, olhava para a cena
e fungava para um lenço com as pestanas flácidas.
(...)
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 António Ferra. estrada de cinza. Leça da Palmeira: Eufeme Poesia, 2021, pp 16-19.
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