quarta-feira, 15 de dezembro de 2021


              Falando em línguas


Em Praga, descobri um café
sem música nenhuma a ameaçar-me as musas,
só as vozes humanas
vestidas de uma língua que não sei,
de declinações tantas e muito
fricativa

À minha frente, dois jovens desatentos
a tudo o que não seja pele e olhar,
nesse desejo inconsequente e belo
de acolher o abismo,
de ser um corpo só, uma só alma
(ou isso que chamamos ao que
nos sobrevoa)

Foi partilhada a fatia de bolo que pediram
em êxtase comum,
neste café deste pedaço curto da cidade,
e a língua de uma música tão estranha para mim
vestiu-se de paixão,
foi declinada com os dois sorrindo,
comendo o bolo, seria doce e bom,
mereceria Magnificats quem sabe,
decerto o olhar deles, sim,
porque daqui, do canto do café onde me sento,
sou ignorante
da língua e dos costumes,
mas não o sou do amor

Podia o bolo ser moldado entre ovos
sem sabor, farinha muito rude e pouco fina,
que lhes havia de saber na mesma
àquilo a que chamamos paraíso:
um corpo em sobressalto e a língua
a apetecer palavras generosas,
como beatífico ou resplandecente

E a gente toda sentada a conversar neste café
sem música, a cidade, o céu já a escurecer,
tudo agora à volta deles ganha um halo
de luz
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  Ana Luísa Amaral. Mundo. Porto: Assírio & Alvim, 2021, pp 86-87.
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