terça-feira, 21 de junho de 2022


      Desejo e espiritualidade em La Parcela de Alejandro Simón Partal


     La Parcela (Caballo de Troya, 2021) é a primeira incursão no romance de
Alejandro Simón Partal, cuja obra poética obteve já, de entre as várias
distinções, os Prémios Arcipreste de Hita (2017) e Hermanos Angensola
(2019). Em termos de galardões, ao presente romance foi igualmente
atribuido o Prémio Cálamo (2021). É doutorado em Filologia Hispânica e
investigador associado da Universidade de Salamanca; distribui a sua
atividade pela Poesia, Romance, Ensaio e Ensino Universitário.
Em La Parcela, é-nos narrada a viagem – simultaneamente interior e
exterior – de um professor universitário espanhol de trinta e doís anos
para Bolonia, perto de Calais, onde acaba por vivenciar uma aventura
amorosa com um refugiado sírio (Nizar) ligeiramente mais novo, que
naquelas paragens aguardava a oportunidade de passar para Inglaterra e
que ele havia conhecido num autocarro (pp 87-90) nos arredores de
Calais. O autor desenvolve, neste livro, um conceito específico a que
chama: o amor radical, que é aquele que pressupõe uma entrega total e,
ao mesmo tempo, coarta o mecanismo dos desejos (1): “pouco a pouco
comecei a entender que Bolonia não me impedia o desejo, mas tão-só a
desmesura dos desejos” (2). Este amor radical comporta na sua estrutura
duas instâncias que o fundamentam: a autenticidade e um vínculo
necessário com a transcendência, como o autor enfatiza numa entrevista
que concedeu: “Sem transcendência minimizamo-nos, empobrecemo-nos,
porque nos limitamos ao palpável, quando quase tudo o que nos sustém é
aquilo que não podemos ver nem tocar “(3). Estamos, pois, ante uma
conceção de amor, que, ao contrário de Platão, assume a materialidade e
o corpo, fazendo-nos mesmo lembrar a exclamação de Gabriel Marcel:
“Eu sou o meu corpo!”, mas assume-o tentando expurgar dele o excesso e
a gratuitidade, não é, pois, por acaso que o tema das lições deste
professor é a análise da obra de Montaigne, já que neste filósofo “estão as
noções mais elementares de liberdade e igualdade, muito mais atuais do
que em alguns tratados dos nossos dias” (4), e em certo momento de uma
aula ele decide mesmo comentar uma frase do filósofo “para explicar a
relação de Montaigne com o seu amigo Étienne de La Boétie, que converti
em seu amante acrescentando assim mais intensidade à história” (5). Esta
visão espiritualizante do Amor e do Amado, este Rito de Sacralização a
que o Outro é submetido, afasta decididamente este romance das
experiências de um certo realismo decadentista, como a de Hollinghurst
em “The line of beauty”, e aproxima-o, pelas marcas de poeticidade e de
reflexão, de dois monumentos deste tipo de literatura: o “Camere
Separate” de Pier Vittorio Tondelli e, até mesmo, desse clássico que é o
“Terre Lointaine” de Julien Green.
     No romance que aqui nos ocupa estamos perante um narrador
autodiegético, que, por ser também a personagem principal, vai tecendo a
linha narrativa intrínseca à ação principal e articulando com ela, por
encaixe, todas ações secundárias, quer estas - por analepses - remetam o
leitor para momentos do passado, quer sejam momentos presentificados
através de ações dos seus colegas de faculdade. Relativamente aos
momentos do passado o narrador rememora os que foram vividos com o
pai, que agora vai agonizando com um cancro na garganta, e que se lhe
apresenta, apesar da distância física, através da memória ou da
imaginação: “Tão-pouco depois da operação à garganta, voltei a ouvir a
voz de meu pai. Minto. Ouvi-o em sonhos, onde ele tinha uma voz
angustiada, uma voz que apurava as palavras; ele fundia-se com o mar,
tentava revelar-me algo decisivo, mas apenas engolia água enquanto se ia
afastando cada vez mais, e da sua boca saíam bolhas e ruídos de
impotência até que, aos poucos, desaparecia na obscura profundidade.”
(6), esta relação com o pai é, para mim, uma outra vertente do amor
radical já referido anteriormente e que neste livro tem uma função dual:
a) redentora (veja-se o que o narrador diz sobre os enfermos e a
aprendizagem da morte- à imagem de Montaigne- na página 30), que vai
ao ponto de aproximar este livro de outros romances que abordam esta
temática como, por exemplo, o “L’amour soudain” do israelita Aharon
Appelfeld; b) elucidativa – exemplo: a acusação feita à vida da mãe (pp
146-147) que se lhe apresenta vazia e repleta de finitudes, aliás, este olhar
para o estatuto da finitude irrompe em outras obras de Simón Partal,
atente-se ao seguinte dístico: “El dolor tiende a la finitude:/ exige limites”
(7). Esta triangulação relacional: protagonista/pai/mãe, a nível
psicanalítico, pode estar em consonância com as experiências vividas no
mundo contemporâneo, mas demarca-se de grande parte das narrativas
clássicas com vivências semelhantes, veja-se, por exemplo, o The
Charioteer de Mary Renault, onde nos capítulos 4, 5 e 6 Laurie deixa clara
a forte adoração pela mãe, que, apesar de já viúva, ainda encontra
resistências no filho ante o pastor Straike com quem ela pretende refazer
a vida.
     Nas entrevistas acima referidas, Simón Partal tem a preocupação em
afastar o seu livro da prosa poética, preocupação com a qual concordo,
mas que não impede que, aqui e ali, a subtileza e a pertinência da função
poética irrompam como modo de complemento ou ilustração: “Que força
convoca a manhã que é capaz de levantar, com um lento amanhecer, os
que têm um coração cansado? Que estranha confiança traz para que a
acolham, todos os dias, aqueles que já se tinham abandonado a si
próprios?” (8); “Porque as pedras da calçada abrem caminhos quando já
não temos rumo. Formam o tapete áspero do tempo e, no entanto,
sobreviver-me-ão, sobreviver-nos-ão. Permanecerão juntas, quando já
aqui não estivermos, quando ninguém nos recordar…” (9), esta
preocupação em afastar o seu livro da prosa poética, não o impede de ter
em mente o que é para si a poesia: “Considero a poesia mais como uma
forma de estar no mundo do que como um trabalho literário” (10).
Mas não é só relativamente à prosa poética que Simón Partal traça
fronteiras, já que nessas entrevistas afirma não ter pretendido escrever
um livro social nem político, asserção que aceito, acrescentando, todavia,
que esta vinculação do amor à transcendência não é uma levitação
abstrata, mas um estar-aqui através de todos os aspetos do humano –
incluindo o social e o económico (11) - e é na urdidura de todas essas
variáveis que a maestria de Partal atinge o seu ponto mais alto, ao saber
dosear na justa proporção: aspirações, fracassos, desejos, frustrações e
vontade de recomeço.
     Importa também advertir que La Parcela jamais cai em quaisquer tipos de
cultismo ou de hermetismo de exibição, coisa que poderíamos ser
tentados a pensar dado o constante tom reflexivo, assim como as
enumerações de autores (Montaigne, Santo Agostinho, Pascal, William
Blake, o cardeal Walter Kasper, etc.), as referências eruditas são sempre
solicitadas pelo desenrolar da ação e/ou pela estrutura do texto, jamais
surgem como excrescências de péssimo estilo: umas vezes essas marcas
do discurso surgem de forma nítida como na página 91: “Tinha
comentado, nas minhas aulas as viagens ao norte de África de poetas
franceses e espanhóis que iam em busca de sexo, peles lisas e juventude”
(12); outras vezes, essas marcas de saber ou de espiritualidade estão de
tal modo imbuídas na ação, que dificilmente as vislumbramos, como por
exemplo a seguinte passagem da página 124: “ Estou num bom lugar,
repeti várias vezes como se fosse um salmo.” Agora comparemos essas
palavras com o segundo verso do Salmo 23: “Javé é o meu pastor. / Nada
me falta. / Em verdes pastagens me faz repousar;/ para fontes tranquilas
me conduz,” (13).
     La Parcela apresenta-se-nos, por conseguinte, como a radiografia natural
e espiritual de um homem chamado a habitar, numa parcela do universo,
essa parcela de absoluto, onde os apelos bio-fisiológicos e culturais
(álcool, drogas, raves, bares, saunas, sexualidade, “encontros” de
ocasião…), muitas vezes, tomam a dianteira sobre a vontade e a razão,
mas que, no mais fundo de si, se apreende em concordância com a
expressão latina (e também de acordo com um título do já referido
Gabriel Marcel) como Homo Viator. Nenhuma queda, por maior que possa
ser, lhe suprimirá o desejo dessa parcela de Amor que, melhor ou pior,
todos os dias vai construindo no seu aqui, daí eu concluir com uma
constatação, que, a certa altura, o narrador faz num dos seus momentos
de silêncio: “Uma pessoa que passa uma terça-feira numa igreja é alguém
que se oferece, que se mostra disponível para o que possa acontecer. Ali
sentado, uma pessoa pode perceber como a eternidade desce nessas
horas de uma manhã de outono. Poucos atos são tão subversivos como
passar a semana sentado numa igreja fazendo parte da serenidade que ali
acontece, protegido da intempérie que o espera do outro lado da porta.”
(14).


(1) Cf. Diário Digital La Nueva Crónica, 2022/03/14;
(2) In La Parcela, p 85. Todas as traduções deste ensaio são de minha
autoria;
(3) Cf. Entrevista referida acima in La Nueva Crónica;
(4) Cf. Entrevista concedida ao Periódico Digital Heraldo de
2022/03/14;
(5) In La Parcela, p 76;
(6) Idem, pp 78-79;
(7) In “La Fuerza Viva”. Valencia: Editorial Pre-Textos, 2017, p 27;
(8) In La Parcela, p 85;
(9) Idem, p 153;
(10)Cf. Entrevista referida acima in La Nueva Crónica;
(11) Cf. La Parcela, p 17, pp 22-23, p 47, p 75, p 131;
(12) Acerca deste tema poder-se-á ler o modo como Gide experienciou
a tríade: experiências vividas, espiritualidade e relacionamento com
Óscar Wilde e Alfred Douglas, In André Gide. Si le grain ne meurt. Paris:
Éditions Gallimard, 2018, pp 285-362;
(13) Bíblia. Apelação: Paulus, 1993, p 730;
(14) In La Parcela, p 73.


Victor Oliveira Mateus in "Oresteia, Revista de Literatura, Filosofia, Ciências Sociais e Artes" Nº 8, maio 2022, Revista quadrimestral: Lisboa: ISSN 2184-8831.
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