quinta-feira, 7 de julho de 2022


LIVRA-ME DO REINO DA QUANTIDADE

 

 Livra-me do reino da quantidade.

Não permitas que seja valorado

pelo número de amigos ou de seguidores

que pudesse ter numa coisa chamada rede.

Faz de mim esse milagre minúsculo como a folha de um salgueiro acabada de irromper.

Apaga a minha assinatura eletrónica dos servidores que me sufocam.

Limpa de servilismos a minha rotina.

Faz com que me escutem ainda que seja eu o único que diz o que digo.

Faz com que não tenha de pedir milhares

ou dezenas de milhar de assinaturas para obter uma ligeira mutação na ordem do mundo.

Livra-me das estatísticas, dos megafones, dos muitos.

Livra-me do engenho que seduz os fáceis.

Faz com que não tenha de me integrar em equipas.

Destrói a palavra cronograma.

Apaga os documentos em que anotei

o que vou pensar e sonhar nos próximos anos.

Concede transparência ao meu futuro.

Investe-me com a sabedoria da árvore,

Guarda para mim uma partícula da integridade de Sócrates

quando molha os seus pés no rio de Atenas.

Que possa sonhar único, escrever como único

rodeado de únicos.

Deixa-me que vista as minhas melhores roupas

para ler os clássicos.

Não tenha de olhar para as listas de ficção ou da não ficção,

as cifras de audiência, o número de visitantes.

Retira-me da cultura de massas que me oprime a caixa torácica

com o seu descaramento crescente em proporção geométrica.

Faz com que a razão como um vento delicado cruze no meu cérebro outros cérebros sem gritos.

Dá-me força para prosseguir ainda que não tenha ninguém

que acompanhe o meu pensamento.

Dá-me um coração sensato, mas não excluas a loucura nem a valentia necessárias

para me opor com elegância às necessidades,

para ser invulnerável às modas,

para prescindir das bibliografias com um golpe de audácia.

Cumpre a tua promessa: Que se abram as portas.

Arromba as grades das reuniões, dos conselhos, comités, comissões e assembleias,

para que possa irromper a manhã em que sopra a primavera impaciente.

Apaga as convocatórias e as notificações.

Tu, que és inimigo acérrimo de todo o absurdo,

anula de vez as entelequias.

Faz com que não tenha de preencher mais formulários.

Livra a minha pele os códigos de barras.

Deixa que tire de cima de mim as cifras alfanuméricas que o Poder me impõe.

Conduz-me ao meu tempo, à época da água.

Deixa que me descalce no meio do prado.

Deixa-me ser o último qualitativo.

Concede-me que viva como Montaigne

ou como Jaccottet à luz do inverno.

Liberta-me do reino da quantidade.

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 Juan Antonio Gonzalez Iglesias. Confiado. Madrid: Visor Libros, 2015, pp 32-34 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).

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