LIVRA-ME DO REINO DA
QUANTIDADE
Livra-me do reino da quantidade.
Não permitas que seja
valorado
pelo número de amigos ou
de seguidores
que pudesse ter numa coisa
chamada rede.
Faz de mim esse milagre
minúsculo como a folha de um salgueiro acabada de irromper.
Apaga a minha assinatura
eletrónica dos servidores que me sufocam.
Limpa de servilismos a
minha rotina.
Faz com que me escutem
ainda que seja eu o único que diz o que digo.
Faz com que não tenha de
pedir milhares
ou dezenas de milhar de
assinaturas para obter uma ligeira mutação na ordem do mundo.
Livra-me das estatísticas,
dos megafones, dos muitos.
Livra-me do engenho que
seduz os fáceis.
Faz com que não tenha de
me integrar em equipas.
Destrói a palavra
cronograma.
Apaga os documentos em que
anotei
o que vou pensar e sonhar
nos próximos anos.
Concede transparência ao
meu futuro.
Investe-me com a sabedoria
da árvore,
Guarda para mim uma
partícula da integridade de Sócrates
quando molha os seus pés
no rio de Atenas.
Que possa sonhar único,
escrever como único
rodeado de únicos.
Deixa-me que vista as
minhas melhores roupas
para ler os clássicos.
Não tenha de olhar para as
listas de ficção ou da não ficção,
as cifras de audiência, o
número de visitantes.
Retira-me da cultura de
massas que me oprime a caixa torácica
com o seu descaramento
crescente em proporção geométrica.
Faz com que a razão como
um vento delicado cruze no meu cérebro outros cérebros sem gritos.
Dá-me força para
prosseguir ainda que não tenha ninguém
que acompanhe o meu
pensamento.
Dá-me um coração sensato,
mas não excluas a loucura nem a valentia necessárias
para me opor com elegância
às necessidades,
para ser invulnerável às
modas,
para prescindir das
bibliografias com um golpe de audácia.
Cumpre a tua promessa: Que
se abram as portas.
Arromba as grades das
reuniões, dos conselhos, comités, comissões e assembleias,
para que possa irromper a
manhã em que sopra a primavera impaciente.
Apaga as convocatórias e
as notificações.
Tu, que és inimigo
acérrimo de todo o absurdo,
anula de vez as
entelequias.
Faz com que não tenha de
preencher mais formulários.
Livra a minha pele os
códigos de barras.
Deixa que tire de cima de
mim as cifras alfanuméricas que o Poder me impõe.
Conduz-me ao meu tempo, à
época da água.
Deixa que me descalce no
meio do prado.
Deixa-me ser o último
qualitativo.
Concede-me que viva como
Montaigne
ou como Jaccottet à luz do inverno.
Liberta-me do reino da quantidade.
.
Juan Antonio Gonzalez Iglesias. Confiado. Madrid: Visor Libros, 2015, pp 32-34 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
.
.
.