sábado, 27 de maio de 2023


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              Livro I: 1 / 1094 a 1 – 1095 a 12(O bem e a atividade humana. A hierarquia dos bens).

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“Toda a arte e toda a investigação, e paralelamente toda a ação e toda a escolha tendem para um qualquer bem., ao que parece. Também se tem afirmado, com razão, que o Bem é aquilo para que todas as coisas tendem.

Mas observa-se, de facto, uma certa diferença entre os fins: uns consistem em atividades, e os outros em certas obras, distintas das próprias atividades. E aí onde existem certos fins distintos das ações, nesses casos as obras são por natureza superiores às atividades que os produzem.

Ora, como há uma multiplicidade de ações, de artes e de ciências, os seus fins são também múltiplos: assim, a arte médica tem por finalidade a saúde, a arte de construir os barcos o navio, a arte estratégica a vitória e a arte económica a riqueza. Mas em todas as artes deste género que relevam de uma única potencialidade (do mesmo modo, com efeito, que sob a arte hípica caem a arte de fabricar os freios e todos os outros ofícios que dizem respeito ao aparelhamento dos cavalos, e que a própria arte hípica e toda a ação que se relaciona com a guerra caem, por suaa vez, sob a arte estratégica, é por esse mesmo modo que as outras artes estão subordinadas às outras), em todos estes casos, podemos dizer, os fins das artes arquitetónicas devem ser preferidos a todos os das artes subordinadas, já que é em vista dos primeiros fins que perseguimos os outros. Pouco importa, de resto, que as próprias atividades sejam os fins das ações, ou que à parte dessas atividades, exista qualquer outra coisa, como no caso das ciências de que temos falado.

Se, portanto, há, nas nossas atividades, um qualquer fim que desejemos em si-próprio, e os outros apenas por causa dele, e se nós não escolhemos indefinidamente uma coisa em vista de uma outra (pois nesse caso proceder-se-ia até ao infinito, de tal modo que o desejo seria fútil e vão), torna-se claro que esse fim não poderia ser mais do que o bem, o Soberano Bem. Não é verdade que, dado tudo isto, que para a condução da vida, o conhecimento desse bem tem um grande peso, e que, tal como os arqueiros que têm um alvo sob o olhar, para a condução da vida, o conhecimento desse bem é de um grande peso, e que, iguais aos arqueiros que têm um alvo sob o olhar, nós poderemos, mais facilmente atingir o objetivo que convém? Se assim é, nós devemos tentar, mais ou menos nas suas grandes linhas, a natureza do Soberano Bem, e dizer de que ciência particular ou de qual potencialidade ele releva. Ser-se-á de opinião que ele depende da ciência suprema e arquitetónica por excelência. Ora, uma tal ciência é manifestamente a Política, pois é ela que dispõe quais são entre as ciências aquelas que são necessárias nas cidades, e quais os tipos de ciências que cada classe de cidadãos deve aprender, e até que ponto o estudo lhes será exigido; e veremos ainda que mesmo as potencialidades mais apreciadas estão subordinadas à Política: por exemplo a estratégia, o económico, a retórica. E já que a Política se serve das outras ciências práticas e que, por outro lado, ela legisla sobre o que é preciso fazer e sobre aquilo de que nos devemos abster, o fim desta ciência englobará os fins das outras ciências; de onde resulta que o fim da Política será o bem propriamente humano. Mesmo se, com efeito, há aí identidade entre o bem do indivíduo e o da cidade, de todo o modo é uma tarefa manifestamente mais importante e mais perfeita de apreender e de salvaguardar o bem da cidade: já que o bem é seguramente amável mesmo por um indivíduo isolado, mas ele é mais belo e mais divino aplicado a uma nação ou às cidades.

Eis, portanto, os objetivos da nossa investigação, que constitui uma forma de política.

Nós teremos cumprido suficientemente a nossa tarefa se tivermos dado os esclarecimentos que comporta a natureza do tema que tratamos, pois, com efeito, não se deve pretender o mesmo rigor em todas os debates indiferentemente, não mais do que o que se exige nas produções da arte. As coisas belas e as coisas justas que são o objeto da Política, dão lugar a tais divergências e a tais incertezas que se pode crer que elas existem apenas por convenção e não por natureza. Uma incerteza semelhante apresenta-se também no caso dos bens da vida, em virtude dos danos que dela frequentemente provêm: já se viu, com efeito, pessoas perecerem pela sua riqueza, e outras perecerem pela sua coragem. Devemos, portanto, contentarmo-nos, quando se trata de semelhantes assuntos e partindo de semelhantes princípios, de mostrar a verdade de um modo aproximativo e em bruto; e quando se fala coisas assumidamente seguras e quando se parte de princípios assumidamente seguros, não se pode alcançar senão conclusões do mesmo tipo. É neste mesmo espírito, desde logo, que deverão ser acolhidas as diversas perspetivas que formulamos: porque é de um homem culto não procurar o rigor para cada género de coisas a não ser na medida em que a natureza do assunto o admita: é evidentemente quase tão insensato aceitar de um matemático raciocínios prováveis quanto exigir de um mestre de retórica demonstrações propriamente ditas.

Por outro lado, cada um julga corretamente naquilo que conhece, e nesse domínio ele é bom juiz. Assim, portanto, num determinado domínio, ajuíza bem aquele que recebeu uma educação adequada, enquanto que, numa outra matéria que exclua toda a especialização, o bom juiz é aquele que recebeu uma cultura geral. Também o homem jovem não é um auditor adequado às lições de Política, porque ele não tem nenhuma experiência das coisas da vida, que são, porém, o ponto de partida e o objeto dos raciocínios dessa ciência. Além do mais, estando inclinado a seguir as suas paixões, ele não retirará desta atitude nada de útil nem de proveitoso, já que a Política tem por fim, não o conhecimento, mas a ação. Pouco importa, de resto, que se seja jovem pela idade ou jovem pelo caráter: a insuficiência a este respeito não é uma questão de tempo, mas ela é devida ao facto de se viver ao sabor das suas paixões e que se precipite na perseguição de tudo aquilo que se vê. Para os irrefletidos desta espécie, o conhecimento não serve para nada, assim como para os intemperantes; para aqueles, ao contrário, cujos desejos e os atos são conformes à razão, o saber nestas matérias será para eles de um grande benefício.

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Aristote. Éthique a Nicomaque. Paris: Librairie Philosophique J. Vrin, 1979, pp 31-39 (Nouvelle Traduction avec Introduction, Notes et Index de J. Tricot); versão portuguesa de Victor Oliveira Mateus.

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