A
JANGADA QUE CORRE O RIO LI
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Corre
a jangada nas calmas águas do rio Li, nesse extenso sul
do
grande continente oriental. Navega um panda-gigante, sentado
parece
uma criança apesar da idade. Mastiga o quase inexistente
bambu,
agarrado pela raiz à existência, florestas de sonhos
que
sucumbiram lentamente pela ferocidade humana. O cenário
é
mágico, saído da remota possibilidade de ser um filme
de
ficção científica; dorme o encantador de serpentes,
hipnose
de crentes dissimulados, que choram lágrimas de crocodilo,
furtivos
e ausentes de chão, de atmosfera, revoltos na densa bruma
entre
os montes de relevo cárstico. Chegará aos pagodes
de
Gullin, gémeos de um ventre profundo, a lua e o sol
que
o lago assimila pelas horas pedidas dos dias; fez-se noite
em
Xingping. Sai o pescador pela madrugada fora quase rasante
sobre
o silêncio da vida inteiriça, ensina o corvo-marinho
domesticado
para agarrar as escamas duras na fome à porta.
A
jangada desce o rio Li, com as barbas ao vento, o peso
dos
sentimentos no olhar cansado, sobrancelhas carregadas
e
rugas nos dedos mecanizados. Desce lentamente a jangada
o
rio Li, engolindo as sombras da chuva, bebendo as lágrimas
de
um povo milenar, somando as montanhas, que no bolso
dos
afluentes levam os bandos até ao mar.
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Carlos Nuno Granja. “As Entranhas da Alma
Proscrita”. Castelo Branco: RVJ Editores, 2023, p 7.
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