As cinco horas da manhã não são propriamente o momento ideal para recebermos visitas ou, ainda mais estranho, para que se nos depare um forasteiro cirandando ao longo do corredor, contudo, depois de ter espreitado pela porta do meu quarto, foi com esta última alternativa que me deparei. Um homem, com mais de sessenta anos, fato azul escuro, cabelo de corte aprimorado, andava de um lado para o outro, por vezes parava, parecendo remoer algum pensamento. Tossiquei, ação de que se apercebeu ao fim de alguns minutos. Não perdeu a compostura. Sorriu calmamente e acenou a cabeça no que me pareceu uma saudação amigável. A situação desconcertava-me: assaltante não era, evidentemente, familiar de alguma das empregadas também não, pois se assim fosse eu teria sido prevenido.
O homem, depois de uns breves instantes, resolveu descer as escadas e sentar-se no grande hall da entrada. Do balcão do primeiro piso fui tentando entender aquilo que me parecia uma certa displicência. Desci também e resolvi enfrentá-lo: pode dizer-me o que faz aqui e quem lhe abriu a porta? Olhou-me com um sorriso brando e estendeu-me a mão: chamo-me Gabriel, ninguém me abriu a porta, eu para entrar não preciso que me abram as portas. Não entendi: quer então dizer que sempre tem vivido aqui? Ele: não!, não é isso que quero dizer, o que estou a tentar explicar-lhe é que sempre tenho vivido a seu lado. Aproximei-me da janela, não fosse eu estar – como me parecia – ante um lunático qualquer. Gabriel percebeu o meu temor e decidiu apaziguar o clima, começando a enumerar uma série de episódios da minha vida. Interrompi-o abruptamente: chega!, o senhor quase parece o meu anjo da guarda! Ele levantou-se e bateu com uma mão na mesa de bilhar: viu como já entendeu! Eu: que idiotice! Não me diga que me quer convencer que é um anjo? Além disso os anjos da guarda não existem, e se existissem não andariam por aí, de casa em casa, a oferecer os seus préstimos, nem tão-pouco teriam o seu aspeto. Gabriel sorriu: ah, não! Então como são eles? Apercebi-me da minha idiotia, mas resolvi continuar o jogo: são brancos, quase transparentes, de asas enormes e macias. Gabriel deu uma gargalhada: meu caro, meu caro, está a falar de pintura e de produtos gráficos. Irritado, decidi pôr ponto final na conversa: bem, chega! Afinal, o que é que pretende? Ele levantou-se repentinamente, colocou um semblante triste, de uma tristeza que me deixou apavorado: vim buscá-lo! Eu: veio buscar-me?! Mas buscar-me para ir aonde? Para quê? Ele: lembra-se de um desastre de automóvel em que quase ia perdendo a vida? Deixei-me cair num dos sofás, sem pinga de sangue. Tudo pareceu esboroar-se nuns meros segundos. Nem um simples estalido conseguia quebrar o peso do momento. Gabriel aproximou-se, fraternal: vim buscá-lo, no entanto, a decisão é sua, compete à sua liberdade decidir o momento, não tem de vir comigo agora… mas, como deve saber, há quem o espere há muito, sabe, não é verdade? Ele olhava-me apiedado. Um frio terrível apoderou-se de todo o meu corpo, a minha voz – a custo – saiu, frouxa: está bem, eu vou agora!
Mal descemos os degraus que separavam a moradia da rua, senti logo uma dor forte a meio do peito. Gabriel afastou-se alguns metros. Cambaleei. Agarrei-me ao mármore do murete. A dor tornou-se de tal modo intensa que me impedia de respirar. Irradiou depois para o braço, para o maxilar. O aperto no peito varava-me até às costas. Ainda ouvi uma das criadas gritar de uma das janelas do primeiro andar. Caí, fulminado. Gabriel continuava calado a olhar-me. Um homem, que dizia ser médico, correu para o meu corpo, massajava-me o peito, soprava-me na boca. A ambulância tardou apenas alguns minutos. Via uma transeunte de braço erguido segurando um balão de soro. Gabriel disse-me: vá, venha, não olhe para trás!, mas eu olhei: a equipa médica usava agora um desfibrilhador. Vi o meu corpo, por três vezes, estremecer com as descargas, por fim, um dos médicos disse ao outro: hora do óbito, 7 horas e 34 minutos. Gabriel sussurrou-me: venha, já não pode regressar! Estranhamente não me senti triste, experimentei mesmo uma certa sensação de alívio. Não vi, contudo, o tal túnel, de que se costuma falar relativamente a sonhos e visões; no local onde na véspera havia um enorme parque de estacionamento e um centro comercial, abria-se agora um frondoso jardim com duas sequóias na entrada, mas logo passando para uma imensidão de pinheiros, tuias e tudo o que de árvore pudesse ser nomeado. A meu lado, Gabriel murmurou: olhe para a esquerda, lá ao fundo! Vi um anfiteatro enorme, que, não sei por que razão, me fez lembrar o de Verona, ou melhor, este superava quatro ou cinco vezes o de Verona: quilómetros e quilómetros de bancadas, quando, bem ao fundo: vi alguém acenando-me! Gabriel incentivou-me: vá! Quando comecei a querer correr na direção da nova personagem, percebi que o ar não era ar, mas antes uma substância transparente e gelatinosa, que me retardava os passos. Insisti. Tinha de vencer aquela resistência de uma atmosfera que não era atmosfera, mas antes outra coisa qualquer que não entendia. Pressionei. Eu não podia desperdiçar esta nova oportunidade! Voltei a pressionar. Puxei tudo aquilo que havia para puxar. Gritei. Esperneei. Esperneei até, por fim, bater com a cabeça num dos móveis. De olhos esbugalhados, vi Dona Lina – a criada mais velha – encostada ao umbral da porta do meu quarto. Olhava-me assustada: o doutor caiu da cama, está há quase uma hora a falar e a agitar-se, são pesadelos, mas eu estava com medo de o acordar, diz-se que não se deve fazer. Eu, arfando ainda: fez bem! Importa-se de me arranjar um copo com água fresca, por favor?
Esperei um tempo infinito pelo copo com água. Dona Lina parecia ter-se esfumado no andar de baixo. Chamei-a inúmeras vezes cá de cima, até que, finalmente, ela apareceu com ar agitado: o doutor desculpe, mas tive de ir atender à porta, estou cá sozinha hoje e estavam a tocar. Eu: quem era? Ela: um senhor, eu nunca o vi cá em casa, mas ele disse-me que é seu amigo e que o doutor estava à espera dele. Fiquei intrigado. Não me ocorria ter combinado o que quer que fosse com alguém. Eu: mas que me lembre eu não estou à espera de ninguém! Ela: desculpe, mas só estou a repetir o que ele disse… ah, ele até me disse que lhe tinha enviado um aviso a dizer que vinha, para irem não sei onde. Eu: um aviso?! Mas como é que esse senhor se chama? Penso que o nome é Gabriel qualquer coisa, mas não percebi bem o segundo nome, mandei-o entrar e está na biblioteca à sua espera.
Vesti-me apressadamente. Quando entrei na biblioteca, Gabriel esquadrinhava as lombadas dos livros. Sorriu ao ver-me. A sua voz era doce, doce e cúmplice ao mesmo tempo: desta vez entrei pela porta! Vamos? Percebeu a minha indecisão, o meu temor. Eu: sabe?, na realidade tenho medo, passou tanto tempo. Gabriel aproximou-se, olhou-me fixamente nos olhos: meu caro, o tempo é uma ficção, um dia de um pirilampo são décadas num ser humano; o tempo depende do olhar de quem habita um espaço e, tem de concordar, a partir do eterno nem sequer um segundo passou. Concluí: sim, quero ir agora! Sorriu de novo. Havia algo nas suas palavras e no seu modo de ser que me transmitia uma inusitada confiança. Reforcei: sim, quero ir agora! Ele: faz bem, merece habitar o que o espera e que, afinal, está tão perto, porque, vendo bem, o além é aqui ao lado.