segunda-feira, 8 de janeiro de 2024


Recensão de Victor Oliveira Mateus do romance O Evangelho Segundo Lázaro de Richard Zimler (Porto Editora, 2016), publicada - na altura - na Revista Pessoa e no Site Casal das Letras. Esta recensão motivaria depois um longo diálogo entre V.O.M. e R.Z., que seria também publicado na Revista Pessoa.
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APONTAMENTOS EM TORNO
D’O EVANGELHO SEGUNDO LÁZARO
DE RICHARD ZIMLER


                                             Quem não pode morrer
                                             arranque a lápide
                                             levante e ande

                                             Até quando?
                                             Até onde?

                                             Edmar Monteiro Filho, Lázaro

 

A vida e obra de Jesus Cristo não têm sido temas apelativos para o romance português contemporâneo. Se o cinema ocidental tem visto no assunto matéria inesgotável para as suas abordagens (Pasolini, Scorsese, Zeffirelli, Gibson, etc.), o mesmo acontecendo com a música dita erudita (Bach, Liszt, Messiaen, etc.), já o romance luso fica-se por duas meras incursões na história sagrada: “O Evangelho Segundo Jesus Cristo”  (1991) de José Saramago e “Os Últimos Dias de Pôncio de Pilatos” (2011) de Paula de Sousa Lima. Se outros motivos não existissem, o facto de nos encontrarmos perante um território literariamente inóspito, já seria de louvar a temeridade com que Richard Zimler se lança na construção da sua narrativa. Sem nos esquecermos que a relação da História com a Cultura tem sido uma das dominantes na ficção de Zimler, urge, no entanto, acrescentar que em O Evangelho segundo Lázaro há uma vertente psicologista – fundada quer numa sistemática introspeção do narrador, quer numa análise do relacional – que, tomando igualmente a dianteira, forma com os aspetos históricos e culturais uma tríade que, não só dota a estrutura narrativa de coerência e sistematicidade, como apresenta a tese central do livro com uma razoabilidade que incita a reflexão e o questionamento.
Este romance de Zimler integra-se num estilo realista alicerçado no histórico, no cultural e no sócio-ideológico, contudo, este realismo é constantemente atravessado por momentos de intersubjetivismo e de intrasubjetivismo, que o autor assinala a itálico. Convém acrescentar que este psicologismo nada tem a ver com as exaustivas análises do mundo interior levadas a cabo por Proust no seu emblemático romance; em Zimler os excertos em itálico mantêm-se presos ao imediatismo do instante vivenciado (Cf. p 25) ou são puras conjeturas em torno do pensamento ou do monólogo interior do outro (Cf. p 52, p 70, p 332). É este aspeto estilístico, bem como a escorreita articulação da intriga e o modo de tratar o tempo narrativo, que dotam O Evangelho segundo Lázaro de uma tessitura sólida e de uma fruição agradável e enriquecedora. Relativamente à questão do tempo narrativo, Richard Zimler demarca-se do romance fragmentado e do articulado emparelhamento dos planos narrativos, optando – de modo exímio e coerente – por uma linearidade diegética constantemente transpassada por analepses (Cf. p 83), elipses (Cf. p 75), resumos (Cf. p 402), prolepses (Cf. p 17). Também no que diz respeito aos aspetos psicológicos já referidos é importante considerar a forma rigorosa como são desenhados atitudes, modelos comportamentais e, sobretudo, as personalidades das personagens como por exemplo as de Jesus, Marta e Anás, o anterior sumo sacerdote, cujas ações aparecem no livro com uma inventariação de pormenores digna de um tratado científico.
O Evangelho segundo Lázaro apresenta um prólogo, à guisa de advertência, para que o pergaminho que vai ser exposto não possa ser roubado, vendido, desfigurado ou queimado (p 9). Após este Conselho amigo, Lázaro lança-se na sua versão da vida de Jesus, tomando como início da narração a história da sua própria ressurreição (pp 13-31), mas sem esquecer de referir o recetor do pergaminho – Yaphiel, o seu neto vivendo em Alexandria -, bem como o tempo histórico e o espaço geográfico da narração. Um dos aspetos mais interessantes deste livro é a forma como se entrecruza a preocupação de rigor de Lázaro com as zonas de sombra que o autor incute no discurso do narrador – exemplo: Lázaro, durante o tempo em que esteve morto não vislumbrou quaisquer sinais de uma qualquer transcendência, o que, obviamente, o deveria direcionar para um ateísmo convicto (na página 271 fala-se mesmo da sua perda da fé!), todavia, várias são as passagens do livro em que ele invoca o Senhor (Cf. p 415); outro exemplo: Lázaro não fundamenta de forma suficientemente clara a forma como entende o regresso de Jesus – aqui e ali – após a sua crucificação, se por vezes levanta a possibilidade de o vir a reencontrar “ quer na sua própria pele, quer na pele de outro homem ou mulher” (p 439), posição esta que tangencia a teoria platónica da transmigração da alma, outras vezes  parece querer substituir o conceito de aparição pelo de visão (p 381-384, p 440), seguindo de perto a sistematização operada por Ratzinger relativamente a investigações teológicas que o precederam. A questão da ressurreição – quer a de Lázaro, quer a de Jesus – é um dos temas fundamentais deste livro, contudo, Zimler afasta-se de toda a tentativa primária de clarificar o fenómeno (uma das tais zonas de sombra já referidas!), parecendo querer deixar para o leitor a liberdade de interpretação, já que são exatamente as palavras de Jesus que irão operar a cisão entre a visão judaica da dos primeiros cristãos no que diz respeito à tríade morte/ fim dos tempos/ ressurreição (Cf. “Ce qu’ils n’ont pas dit de Pâques” de Daniel Marguerat in “Les premiers temps de l’Église”, org. Marie-Françoise Baslez, Gallimard, 2004, pp 92-100): Marta e Maria sabem que Lázaro ressuscitará no fim dos tempos, mas isso não parece consolá-las, daí reprovarem Jesus por não ter chegado a tempo ( Cf. Daniel Marguerat, op. cit. p 99), por sua vez este, apesar de saber que ainda naquele dia (e o fim dos tempos é, então, trazido para o presente!) Lázaro poderia estar diante do Senhor, mesmo assim, decide trazê-lo de novo à vida. Eis os dois pontos fundamentais deste livro: a ressurreição de Lázaro e a figura de Jesus!
A figura de Jesus não é, no entanto, nesta obra, apresentada como a do filho unigénito de Deus, como aquele que sendo Deus encarnado participa da sua substância e da sua natureza. É evidente que é um filho de Deus, mas no sentido em que todos o somos, talvez com capacidades e aptidões superiores às do vulgo para comunicar com a transcendência, mas é apenas isso e nada mais. Por conseguinte, em O Evangelho segundo Lázaro, Jesus é frequentemente apresentado (apenas) como: profeta (p 237), milagreiro (p 261), um ser extraordinário (p 214, p 265), mago (p 177, p 295), “auxiliador/ comunicador à distância” (p 338, p 356), curandeiro (p 358), feiticeiro (p 196). Ora, e aqui Richad Zimler insere exemplarmente o seu livro no ambiente teológico e filosófico não só da época por ele abordada, mas também daquelas que imediatamente se lhe seguiram – exemplos: Apolónio de Tiana (final do século I D.C.) viajou por todo o Império Romano tendo granjeado fama de mago, profeta e operador de milagres, aliás, também a tese de divindades intermédias ou de seres mediadores era bastante comum, como podemos ver em Numénio de Apameia (Síria, século I D.C.) e em Plutarco de Queroneia ( 46-120 D.C.), sendo este o mais notável representante do chamado Platonismo Médio e em Fílon de Alexandria (30 A.C. ?), convém não esquecer que é exatamente em Alexandria que reside a tia de Lázaro, Ester, e será nesta cidade que a personagem que dá título ao livro encontrará um dos seus refúgios, bem como algumas das primeiras figurações de um cristianismo emergente, deturpador e fanatizado. Será em Alexandria, já perto do final do romance, que Lázaro irá conhecer os arautos de uma nova religião alicerçada numa figura que nada tem que ver com o Jesus que ele conheceu e com quem conviveu desde a infância.
Mas O Evangelho segundo Lázaro não é apenas uma obra inserida, de modo escorreito, numa cultura a partir da qual lança a sua mensagem. Os aspetos político-ideológicos (Cf. p 333), económicos e sociais são a outra trave mestra do romance: após a sua ressurreição, Lázaro regressa a casa numa ruela onde as pessoas se começam a amontoar para, diariamente, lhe pedirem a bênção ou, até mesmo, a cura para uma ou outra maleita. Este fenómeno, bem como a cumplicidade com um Jesus, que, pelo discurso e pela ação, vai afrontando os poderosos do seu tempo, acabará trazendo enormes problemas aos dois amigos. Veja-se, por exemplo: Jesus libertando um escravo (p 212), as críticas que faz a Caifás (p 214), a sua recusa da passividade ante o poder de Roma (p 218), etc. O afrontamento de Jesus aos valores da conformidade, bem como a solidariedade – por vezes cautelosa – demonstrada por Lázaro, têm duas consequências inevitáveis: a prisão e crucificação de Jesus e a perseguição movida a Lázaro – e família - que o leva a ter de abandonar a Palestina. O conflito, inicialmente com a casta sacerdotal - sobretudo com o despótico Anás, o antigo sumo sacerdote – que teme a perda de privilégios, alastra depois ao poder temporal e, apesar de não se estar perante um modelo político teocrático, o que é facto é que a execução de Jesus enfatiza a frase de Henri Pena-Ruiz para este tipo de sociedades: “Dieu et César pour le pire” (In “Qu’est-ce que la laicité?”, Folio, 2003, pp 50-56). Lázaro tudo faz para tirar o seu amigo da prisão: pedidos a Lucius, seu patrão; tentativa de persuadir Augustus Sallustius, o áugure de Pilatos, mas nada surte efeito. Estava-se perante o inevitável (pp 354-373)! Com parte da família assassinada como represália, resta a Lázaro uma única saída: a fuga, primeiro para Jericó, depois para Rodes… No final do romance, surge a explicitação do porquê da necessidade de escrever este seu Evangelho, da necessidade que sentiu em expor a Yaphiel, seu neto, aquilo que foi a verdade factual da vida de Jesus, aquela que ele vira com os seus próprios olhos e não a propagada naquele momento pelos seus seguidores que pululavam mundo afora.
 Richard Zimler articula assim de modo inextricável três variáveis: a preocupação com a verdade objetiva de que o narrador se faz arauto; as “pausas” de cariz reflexivo (Cf. p 221, p 243), que, porque distanciadas umas das outras, poderão parecer incipientes e desnecessárias e os momentos carregados de forte poeticidade, sobretudo os que relevam da relação de Lázaro com Maria, uma das irmãs, e com Jesus, onde o corpo e os sentidos assumem sempre uma conotação positiva (Cf. p 347, p 371). É a conjugação destas últimas variáveis com o referido no segundo parágrafo deste texto, que fazem d’ O Evangelho segundo Lázaro uma obra de valor inestimável e imperdível.

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