Louise Dupré
Exercícios de alegria (1ª Parte)
Éditions du Noroit e Éditions Boucey (2022)
Os sonhos afogados
no fundo dos teus olhos
acabam por regressar à
superfície
no sal das lágrimas
pequenos cadáveres
branqueados
pelos anos
que te despertam
à noite
quando pretendes dormir
profundamente
é demasiado tarde
para arrependimentos
demasiado tarde
para recuperar o tempo
perdido
as mulheres que habitaram
o teu nome
tu as abandonaste
uma após outra
com os seus vestidos
fora de moda
e eis-te agora
nua
frente ao espelho
eis-te aqui rosto
vazio, navio
fantasma
cidade sem pátria
e escutas
tranquila
a música do mundo
deixando irromper
as imagens
que já não te magoam
procuras agora
exercer
a ternura
como uma disciplina
de combate
uma bondade para te
moldares
a ti mesma
tu, a mendiga
de minúsculas alegrias
arrancadas ao desespero
dizes alegrias
porque não sabes
como nomear
os instantes em que o teu coração
para de bater
dentro do teu peito
esses momentos de graça
em que uma carapaça te
protege
dos gritos
que vais escutando
estão perto
estão por todo o lado
e todos os dias
esta angústia
impossível de aliviar
isso ensurdece-te
isso liquida-te
sem que desapareças
e tornas-te então numa
morta-viva
forçada a peregrinar
no meio de um inferno
de transeuntes
mas sobreviver
não te satisfaz
tu preferes limpar
a fuligem
dos teus dedos
escrever pouco
escrever pobre
mas escrever
o que poderia irromper
no silêncio
da quietude
como se t’agarrasses
a uma boia
o tempo de recuperar
o fôlego
para vislumbrares a
ondulação
finalmente calma
de te perguntares
o que poderá surgir
em ti
quando já não se tem
nem ambição nem orgulho
mas apenas um cenário
de cartão
com paredes esburacadas
que deixam ver
uma paisagem em ruínas
o que é que sobra
quando nada sobrar
salvo uma pequena
claridade
que te convida a que a
sigas
através da escuridão
e tu segue-la
como um caminho
à flor da pele
esperando
uma hospitalidade
apesar do teu corpo
esboroável
tu ainda consegues
respirar
ainda consegues revolver
o ar denso
das ruas
sem esperar
consolação
já não tens idade
para rosas nem pássaros
e não conseguirás
reparar a tua alma
nem a Terra
nem o céu
agora abandonado
admite-o
como uma evidência
desenhada
nas linhas
da tua mão
porque tu aprendes a ler
o que ninguém te quis
ensinar
como se abrem
as narinas
ante os perfumes de julho
és uma respigadeira
revolvendo
os caixotes de lixo
e reciclas
flores secas, bibelôs
ou poemas
mil vezes recitados
nas escolas
antes de serem condenados
ao esquecimento
é tão fácil apagar
o quadro negro
tão frágil, a memória
dos livros
que tentam resistir
a todo o tipo de poluição
tomas de empréstimo aos
tempos
antigos
a voz dos enforcados
que imploram piedade
aos seus semelhantes
mas tu não acreditas
no teu próprio apelo
não acreditas
poder
abalar os muros
erguidos nos quatro cantos
da humilhação
estão por toda a parte
e bem perto
como uma febre
sem cura
um ácido
que corrói a razão
enlouquecem-te
e tu sabes isso
mas preferes o teu
tormento
à doença
dos corações empedernidos
tu dominas o teu delírio
e escreves
apesar do medo
que te cortem a mão
procuras sinónimos
atuais
para a palavra obrigado
e dizes compaixão
ou bondade
quando te ergues
contra a língua letal
que te impõem
está por toda a parte
é a tenacidade e a astúcia
que pirateiam todos os
dias
a mente
como uma rede
mal protegida
por vezes tu desejarias
a amnésia
mas escolhes
o sofrimento
em vez de renunciar
à agitação
do mundo
o poema ressuscita
das palavras
assassinadas
e planta cravos
no infortúnio
para o tornar
suportável
o poema é uma oração
secreta
uma noite que pretende
fazer ouvir
as óperas do passado
tu cantas desafinada
ora mal ora numa lástima
mas cantas
porque de nada te serve
choramingar
mesmo que este tempo se
esteja
afundando no mar
como um paquete
esventrado
havia orquestras
capazes de acompanhar
o seu naufrágio
havia desesperos
que mantinham coragem
até ao fim
tu não pretendes morrer
antes da morte
e contas
pelos dedos
os anos que te restam
procurando
de que resistência
te podes reclamar
senão da vida
que pretendes fruir
até ao fim
e regressas
ao verbo querer
tu repete-lo
como se ele se pudesse
apresentar
suficientemente benévolo
para apaziguar os teus choros
e sem esperares
o mínimo auxílio
ergues o olhar
para a esperança de um
amanhecer
e acolhe-la
na palma da mão
Tradução de Victor Oliveira Mateus
Nota: As expressões em itálico referem-se ao poema “Balade des pendus” de François Villon..
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