quarta-feira, 23 de outubro de 2024


A tradução que se segue de um extenso poema da poeta do Quebec Louise Dupré, foi publicada na Revista Oresteia em outubro de 2024.. A referida publicação foi devidamente autorizada pela poeta em referência, e pelas editoras onde o poema havia sido editado, no Canadá e em França.
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                                 Louise Dupré

                 Exercícios de alegria (1ª Parte)

    Éditions du Noroit e Éditions Boucey (2022)

 

Os sonhos afogados

no fundo dos teus olhos

 

acabam por regressar à superfície

no sal das lágrimas

 

pequenos cadáveres

branqueados

pelos anos

 

que te despertam

à noite

 

quando pretendes dormir

profundamente

 

é demasiado tarde

para arrependimentos

 

demasiado tarde

para recuperar o tempo

perdido

 

as mulheres que habitaram

o teu nome

 

tu as abandonaste

uma após outra

 

com os seus vestidos

fora de moda

 

 

e eis-te agora

nua

frente ao espelho

 

 eis-te aqui rosto

vazio, navio

fantasma

 

cidade sem pátria

 

e escutas

tranquila

a música do mundo

 

deixando irromper

as imagens

que já não te magoam

 

procuras agora

exercer

a ternura

 

como uma disciplina

de combate

 

uma bondade para te moldares

a ti mesma

 

tu, a mendiga

de minúsculas alegrias

arrancadas ao desespero

 

dizes alegrias

porque não sabes

como nomear

 

 os instantes em que o teu coração

para de bater

dentro do teu peito

 

esses momentos de graça

 

em que uma carapaça te protege

dos gritos

que vais escutando

 

estão perto

estão por todo o lado

e todos os dias

 

esta angústia

impossível de aliviar

 

isso ensurdece-te

isso liquida-te

sem que desapareças

 

e tornas-te então numa morta-viva

 

forçada a peregrinar

no meio de um inferno

de transeuntes

 

mas sobreviver

não te satisfaz

 

tu preferes limpar

a fuligem

dos teus dedos

 

escrever pouco

escrever pobre

 

mas escrever

o que poderia irromper

 

no silêncio

da quietude

 

como se t’agarrasses

a uma boia

 

o tempo de recuperar

o fôlego

 

para vislumbrares a ondulação

finalmente calma

 

de te perguntares

o que poderá surgir

em ti

 

quando já não se tem

nem ambição nem orgulho

 

mas apenas um cenário

de cartão

com paredes esburacadas

 

que deixam ver

uma paisagem em ruínas

 

o que é que sobra

quando nada sobrar

 

salvo uma pequena claridade

que te convida a que a sigas

através da escuridão

 

e tu segue-la

como um caminho

à flor da pele

 

esperando

uma hospitalidade

 

apesar do teu corpo

esboroável

 

tu ainda consegues

respirar

 

ainda consegues revolver

o ar denso

das ruas

 

sem esperar

consolação

 

já não tens idade

para rosas nem pássaros

 

e não conseguirás

reparar a tua alma

 

nem a Terra

 

nem o céu

agora abandonado

 

admite-o

como uma evidência

 

desenhada

nas linhas

da tua mão

 

porque tu aprendes a ler

o que ninguém te quis

ensinar

 

como se abrem

as narinas

 

ante os perfumes de julho

 

és uma respigadeira

revolvendo

os caixotes de lixo

 

e reciclas

flores secas, bibelôs

ou poemas

 

mil vezes recitados

nas escolas

 

antes de serem condenados

ao esquecimento

 

é tão fácil apagar

o quadro negro

 

tão frágil, a memória

dos livros

 

que tentam resistir

a todo o tipo de poluição

 

tomas de empréstimo aos tempos

antigos

a voz dos enforcados

 

que imploram piedade

aos seus semelhantes

 

mas tu não acreditas

no teu próprio apelo

 

não acreditas

poder

abalar os muros

 

 erguidos nos quatro cantos

da humilhação

 

estão por toda a parte

e bem perto

 

 

como uma febre

sem cura

 

um ácido

que corrói a razão

 

enlouquecem-te

e tu sabes isso

 

mas preferes o teu tormento

à doença

dos corações empedernidos

 

tu dominas o teu delírio

e escreves

 

apesar do medo

que te cortem a mão

 

procuras sinónimos

atuais

para a palavra obrigado

 

e dizes compaixão

ou bondade

 

quando te ergues

contra a língua letal

que te impõem

 

está por toda a parte

 

 é a tenacidade e a astúcia

que pirateiam todos os dias

a mente

 

como uma rede

mal protegida

 

 

por vezes tu desejarias

a amnésia

 

mas escolhes

o sofrimento

 

em vez de renunciar

à agitação

do mundo

 

o poema ressuscita

das palavras

assassinadas

 

e planta cravos

no infortúnio

 

para o tornar

suportável

 

o poema é uma oração

secreta

 

uma noite que pretende

fazer ouvir

as óperas do passado

 

tu cantas desafinada

ora mal ora numa lástima

 

mas cantas

 

porque de nada te serve

choramingar

 

mesmo que este tempo se esteja

afundando no mar

 

como um paquete

esventrado

 

havia orquestras

capazes de acompanhar

o seu naufrágio

 

havia desesperos

que mantinham coragem

até ao fim

 

tu não pretendes morrer

antes da morte

 

e contas

pelos dedos

os anos que te restam

 

procurando

de que resistência

te podes reclamar

 

senão da vida

que pretendes fruir

até ao fim

 

e regressas

ao verbo querer

 

 

 

tu repete-lo

como se ele se pudesse apresentar

suficientemente benévolo

 

para apaziguar os teus choros

 

e sem esperares

o mínimo auxílio

 

ergues o olhar

para a esperança de um amanhecer

 

 

e acolhe-la

na palma da mão

 

                      Tradução de Victor Oliveira Mateus

 

Nota: As expressões em itálico referem-se ao poema “Balade des pendus” de François Villon..

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