Dispersa Palavra 3 (Victor Oliveira Mateus)
quarta-feira, 18 de dezembro de 2024
domingo, 1 de dezembro de 2024
sábado, 30 de novembro de 2024
quarta-feira, 27 de novembro de 2024
LEONARDO
Ecco che il grande uccello in volo si è levato:
e l’ampia piana scruta in
alto veleggiando
assorto tra le ali come un
pensiero inquieto
che sale sale ancora,
sfidando l’orizzonte –
nella strettura in fondo, dove s’insinua il fiume,
l’ostacolo intuisce, il
bloco che sbarrava
il passo verso il mare, e
il lago primordiale
tra i colli e le castella,
l’ambiente coi riflessi
tonali tra le canne, le
trecce delle onde
che frangono la sponda,
afferrano le nebbie
e su sulle montagne riposano conchiglie
avvolte tra le rocce, e
solo lui le coglie
nel tempo delle ere precipitate in basso,
in un lontano mare di
forme elementari
in cui la vita sboccia,
non cerca narrazioni
come per primo è il buio e poi la luce che si afferma,
e la natura è piena di
ragioni seducenti
che mai non sono state
nell’arco di esperienza,
prossegue solitario l’intrepido confronto:
occhio che non si arresta
nel cuore del profondo.
.
Luca Baldoni. Anno naturale. Firenze: Passigli Editori, 2021, p 53.
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segunda-feira, 11 de novembro de 2024
Leonardo
Eis que o grande pássaro
levanta seu voo:
e a vasta planície
observa-o, no alto, planando
absorto, com suas asas,
como um pensamento inquieto
que se ergue de novo,
fustigando o horizonte –
.
no cenário ao fundo, onde
o rio se insinua,
divisa-se o obstáculo, o
cerco que impedia
a passagem na direção do
mar, e o lago originário
entre colinas e castelos,
o ambiente com reflexos
cintilantes no meio do
canavial, o entrançado das ondas
que rebentam à beira-mar,
atinge a neblina
.
e no cume das montanhas
repousam conchas
emaranhadas entre as
rochas, e apenas ele as alcança
no momento em que mergulha
num remoto mar de formas
elementares
onde a vida eclode, não
procura narrativas
.
já que primeiro são as
trevas e depois a luz que se afirma,
e a natureza está repleta
de sedutoras razões
que nunca haviam estado no arco da experiência,
.
prossegue solitário o
arrojado confronto:
olhar que não se detém no
coração das profundezas.
.
Luca Baldoni. Anno naturale. Firenze: Passigli Editori, 2021, p 53 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
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quarta-feira, 23 de outubro de 2024
Louise Dupré
Exercícios de alegria (1ª Parte)
Éditions du Noroit e Éditions Boucey (2022)
Os sonhos afogados
no fundo dos teus olhos
acabam por regressar à
superfície
no sal das lágrimas
pequenos cadáveres
branqueados
pelos anos
que te despertam
à noite
quando pretendes dormir
profundamente
é demasiado tarde
para arrependimentos
demasiado tarde
para recuperar o tempo
perdido
as mulheres que habitaram
o teu nome
tu as abandonaste
uma após outra
com os seus vestidos
fora de moda
e eis-te agora
nua
frente ao espelho
eis-te aqui rosto
vazio, navio
fantasma
cidade sem pátria
e escutas
tranquila
a música do mundo
deixando irromper
as imagens
que já não te magoam
procuras agora
exercer
a ternura
como uma disciplina
de combate
uma bondade para te
moldares
a ti mesma
tu, a mendiga
de minúsculas alegrias
arrancadas ao desespero
dizes alegrias
porque não sabes
como nomear
os instantes em que o teu coração
para de bater
dentro do teu peito
esses momentos de graça
em que uma carapaça te
protege
dos gritos
que vais escutando
estão perto
estão por todo o lado
e todos os dias
esta angústia
impossível de aliviar
isso ensurdece-te
isso liquida-te
sem que desapareças
e tornas-te então numa
morta-viva
forçada a peregrinar
no meio de um inferno
de transeuntes
mas sobreviver
não te satisfaz
tu preferes limpar
a fuligem
dos teus dedos
escrever pouco
escrever pobre
mas escrever
o que poderia irromper
no silêncio
da quietude
como se t’agarrasses
a uma boia
o tempo de recuperar
o fôlego
para vislumbrares a
ondulação
finalmente calma
de te perguntares
o que poderá surgir
em ti
quando já não se tem
nem ambição nem orgulho
mas apenas um cenário
de cartão
com paredes esburacadas
que deixam ver
uma paisagem em ruínas
o que é que sobra
quando nada sobrar
salvo uma pequena
claridade
que te convida a que a
sigas
através da escuridão
e tu segue-la
como um caminho
à flor da pele
esperando
uma hospitalidade
apesar do teu corpo
esboroável
tu ainda consegues
respirar
ainda consegues revolver
o ar denso
das ruas
sem esperar
consolação
já não tens idade
para rosas nem pássaros
e não conseguirás
reparar a tua alma
nem a Terra
nem o céu
agora abandonado
admite-o
como uma evidência
desenhada
nas linhas
da tua mão
porque tu aprendes a ler
o que ninguém te quis
ensinar
como se abrem
as narinas
ante os perfumes de julho
és uma respigadeira
revolvendo
os caixotes de lixo
e reciclas
flores secas, bibelôs
ou poemas
mil vezes recitados
nas escolas
antes de serem condenados
ao esquecimento
é tão fácil apagar
o quadro negro
tão frágil, a memória
dos livros
que tentam resistir
a todo o tipo de poluição
tomas de empréstimo aos
tempos
antigos
a voz dos enforcados
que imploram piedade
aos seus semelhantes
mas tu não acreditas
no teu próprio apelo
não acreditas
poder
abalar os muros
erguidos nos quatro cantos
da humilhação
estão por toda a parte
e bem perto
como uma febre
sem cura
um ácido
que corrói a razão
enlouquecem-te
e tu sabes isso
mas preferes o teu
tormento
à doença
dos corações empedernidos
tu dominas o teu delírio
e escreves
apesar do medo
que te cortem a mão
procuras sinónimos
atuais
para a palavra obrigado
e dizes compaixão
ou bondade
quando te ergues
contra a língua letal
que te impõem
está por toda a parte
é a tenacidade e a astúcia
que pirateiam todos os
dias
a mente
como uma rede
mal protegida
por vezes tu desejarias
a amnésia
mas escolhes
o sofrimento
em vez de renunciar
à agitação
do mundo
o poema ressuscita
das palavras
assassinadas
e planta cravos
no infortúnio
para o tornar
suportável
o poema é uma oração
secreta
uma noite que pretende
fazer ouvir
as óperas do passado
tu cantas desafinada
ora mal ora numa lástima
mas cantas
porque de nada te serve
choramingar
mesmo que este tempo se
esteja
afundando no mar
como um paquete
esventrado
havia orquestras
capazes de acompanhar
o seu naufrágio
havia desesperos
que mantinham coragem
até ao fim
tu não pretendes morrer
antes da morte
e contas
pelos dedos
os anos que te restam
procurando
de que resistência
te podes reclamar
senão da vida
que pretendes fruir
até ao fim
e regressas
ao verbo querer
tu repete-lo
como se ele se pudesse
apresentar
suficientemente benévolo
para apaziguar os teus choros
e sem esperares
o mínimo auxílio
ergues o olhar
para a esperança de um
amanhecer
e acolhe-la
na palma da mão
Tradução de Victor Oliveira Mateus
Nota: As expressões em itálico referem-se ao poema “Balade des pendus” de François Villon..
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domingo, 22 de setembro de 2024
quarta-feira, 18 de setembro de 2024
quinta-feira, 12 de setembro de 2024
sábado, 17 de agosto de 2024
quinta-feira, 15 de agosto de 2024
domingo, 11 de agosto de 2024
sábado, 3 de agosto de 2024
Eis
o segredo da elegância de Brummell; eis, afinal, o segredo de todas as
elegâncias: a perfeição discreta, a harmoniosa simplicidade. – “O verdadeiro
elegante – dizia Brummell -não deve dar nas vistas.” E Barbey d’Aurevilly
repetiu: -“ L’homme bien mis ne doit pas être remarqué.” Na fria distinção do
grande dandy havia alguma coisa de sobriedade grega, do maravilhoso equilíbrio
ático: a entrada de Jorge Brummell no salão doirado de Lady Giorgiana Spencer,
duquesa de Devonshire – então o mais célebre salão de Londres – devia lembrar a
do elegante Alcibíades, caminhando, coroado de violetas (…) O favorito de Jorge
IV de Inglaterra era um orgulhoso frio, um insolente amável, um impertinente
paradoxal, um desfrutador glacial e irónico que olhava para toda a gente do
alto do seu desdém (…) que sem ter tido sequer talento (as poucas cartas que
dele restam são notavelmente mal escritas), deixou discípulos na literatura
inglesa, um dos quais (…) é Oscar Wilde.. (…) Os ídolos depressa caem. Uma bela
noite, numa ceia em Carlton-House, quando já o champanhe corria a rodo,
Brummell voltou-se para o príncipe de Gales: - “Jorge, chama o criado!” O
futuro Jorge IV de Inglaterra empalideceu, mediu de alto a baixo o insolente,
puxou o cordão de seda da campainha, e, quando os criados assomaram, limitou-se
a dizer: -“Levem esse bêbedo.” (…) Morreu louco, em 1840, num asilo de
alienados.
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Júlio
Dantas. “O heroísmo, a elegância, o amor”. Lisboa: Delraux, 1980, pp 70-74.
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Jerónimo
Colaço e Paiva Araújo representam duas modalidades opostas da elegância do
Romantismo: a elegância alegre, expansiva, brilhante, e a elegância triste,
byroniana, melancólica. Ambas elas foram queridas das mulheres, mas a segunda
foi, quase sempre, infeliz no amor. (…) Quero referir-me a Garrett. Para em
tudo ser grande, este homem singular a quem os seus contemporâneos chamaram “o
divino”, como a Platão, foi um dos maiores, senão o maior elegante do seu
tempo. (…) Quando tinha de pronunciar algum dos seus monumentais discursos, não
esquecia nenhum pequeno pormenor de elegância: ele, que não usava rapé, levava
sempre consigo uma pequena tabaqueira de ouro para o ajudar nos gestos; e
nunca, antes de começar a falar, deixava de esfregar as mãos para as fazer mais
pálidas (…) Que elegância majestosa, só comparável à de Lamartine!
Iluminava-se, crescia, arrebatava. E, entretanto, Garrett não era belo. Garrett
lutava com a falta de dotes naturais (…( Tudo nele era postiço, desde o
espartilho até ao chinó (…) desde o chumaço dos ombros até ao bucho das pernas.
Quando à noite recolhia a casa (…) desmanchava-se como um puzzle.
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Júlio
Dantas, Idem pp 86-88.
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quarta-feira, 24 de julho de 2024
A
14 de outubro de 1994, seis anos após o anúncio do seu Prémio Nobel, o escritor
egípcio Naguib Mahfouz, de oitenta e dois anos, saiu de casa, dirigindo-se a pé
ao seu café favorito para a reunião semanal com os seus colegas escritores e pensadores.
Enquanto caminhava houve um carro que começou a rodar lentamente ao seu lado.
Ele disse mais tarde que pensara que era provavelmente um fã. Não era um fã.
Era um homem que saltou do carro e esfaqueou repetidamente Mahfouz no pescoço.
Mahfouz ficou por terra e o seu atacante fugiu. Felizmente, o grande escritor
sobreviveu ao ataque, mas foi um caso de “terrorismo cultural” do qual tinha
previamente acusado os fundamentalistas islâmicos egípcios. Um ataque deste
tipo pairava há muitos anos sobre a cabeça de Mahfouz. (…) tinha sido proibido
por “ofender o Islão”. Pelo menos um mulá ativista fanático tinha declarado que
Mahfouz merecia morrer. Descobriu-se uma lista de condenados à morte islamita
na qual ele figurava, quase à cabeça.
(…)
Sobreviveu, e viveu mais doze anos, com a permanente proteção de guarda-costas
que antes tinha recusado. Os ferimentos foram de tal ordem que só conseguia
escrever uns minutos por dia.
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Salman
Rushdie. “Faca”. Alfragide: D. Quixote, 2024, pp 179-180.
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terça-feira, 9 de julho de 2024
Nel celeste delle rabbie schiarite non porti ombra né fiori, hai la maschera
vaga, la prudenza dell’amante, quale smania ti prende
amico caro? Sono stata insieme a te, ora me ne vado e piove
acqua nel chiaro delle tenebre.
Dicono che i grandi fiumi hanno memoria, dicono che il divenire
è più forte del dolore, tu hai la veste dell’insonnia animale
qui invece barche, silenzi, lucciole traverse, l’incerto si fa
tenero, i morti non si fanno vedere, solo labbra di acque macellate
La stagione si appendeva agli alberi in una sconcia
confidenza con la terra. Era il giorno fedele ai nomi,
disegnavo quattro corpi sulle buste delle lettere,
perché la vita è poca e tu scomparso eri un luogo intero.
Lo vedi questo cielo impasticcato? Allucinato
verso un bianco crudele che è il bianco
delle palpebre, il bianco della gola quando
qualcuno ha detto «Adesso è pronto». Ma
io non ci credo, nessuno è
pronto, un istante sulla Terra, nessuno
è pronto, era nostro il perfetto insieme, il tuo nome,
la finestra aperta, amore mio cosa sta accadendo?
Cosa deve avvenire? Questa morte non esiste.
*-*
Num admirável delírio iluminado não trazes sombra nem flores, trazes uma máscara
errante, a prudência do amante, que inquietude te possui
caro amigo? Tenho estado junto a ti, agora vou-me embora e chove
água na claridade das trevas.
Dizem que os grandes rios têm memória, dizem que o devir
é mais forte do que a dor, tens o manto de uma insónia animal
que em vez de barcos, silêncios, pirilampos, o incerto torna
suave, os mortos não se deixam ver, apenas os lábios de água arruinados.
A estação pendurava-se nas árvores em licenciosas
confidências com a terra. Era um dia de fidelidade aos nomes,
eu desenhava quatro corpos nos envelopes das cartas,
porque a vida é curta e tu desaparecido eras um espaço completo.
Vês este céu pegajoso? Alucinado
na direção de um branco cruel como é o branco
das pálpebras, o branco da garganta quando
alguém diz “Agora está pronto!” Mas
eu não acredito, ninguém está
pronto, sequer um instante sobre a Terra, ninguém
está pronto, era nosso o perfeito estar junto, o teu nome,
a janela aberta, meu amor o que está sucedendo?
O que deve sobrevir? Esta morte não existe.
Tradução de Victor Oliveira Mateus
*-*-*
Mary B. Tolusso vive tra Milano e Trieste. Laureata in Lettere svolge attività di giornalista. È autrice dei romanzi L’imbalsamatrice (Gaffi, 2010), L’esercizio del distacco (Bollati Boringhieri, 2018) e delle raccolte poetiche L’inverso ritrovato (Lietocolle, 2003), Il freddo e il crudele (Stampa, 2012), Apolide (Specchio-Mondadori, 2022, finalista al Premio Strega 2023). È presente in antologiche tra cui I mari di Trieste (Bompiani, 2015). Poeti dopo il Duemila (Mondadori, 2017) e Poesie dell’Italia contemporanea (Il Saggiatore, 2023), ha tradotto Giacomino da Verona per il volume Visioni dell’aldilà prima di Dante (Mondadori, 2017). Ha ricevuto il Premio Pasolini (2004), Premio Fogazzaro (2012), Premio Internazionale Città di Moncalieri (2023) Premio Acqui Terme (2023).
sábado, 25 de maio de 2024
Ensaio de Victor Oliveira Mateus publicado na "Revista Oresteia" a 03/05/2024.
Aproximações ao Pensamento de Joseph Ratzinger – Artigo 2: Evolucionismo e Criacionismo.
Os confrontos entre Evolucionismo e Criacionismo têm, ao longo dos tempos, proporcionado os mais diversos debates, distintos quer em veemência quer ao nível da sua fundamentação. Logo em 1860, um ano após Darwin ter publicado A Origem das espécies, assistimos ao confronto entre Samuel Wilberforce, bispo de Oxford e membro da Câmara dos Lordes, e Thomas Henry Huxley, morfologista e paleontólogo; é um embate entre dois grandes vultos da era vitoriana: um da Igreja, outro da ciência. Atravessando o Atlântico, encontramos em tribunal, nos E.U.A., no Tennessee, em 1920, John Thomas Scopes, professor local acusado de ensinar nas aulas a teoria de Darwin da evolução, violando assim a lei estatal. Scopes é declarado culpado e multado, embora posteriormente um recurso tenha anulado a decisão judicial devido a um pormenor técnico. Por fim, em 1957, em plena Guerra Fria, após as conquistas espaciais soviéticas e os seus livros escolares começarem a apresentar exposições completas e pormenorizadas da evolução, surge, no seio do cristianismo americano, uma alternativa a essas posições que viria a ser chamada de Criacionismo, contudo, isto acabou por conduzir a que em 1981, no estado do Arcansas, outro julgamento acabasse por deliberar a favor do Evolucionismo, forçando assim a retirada do Criacionismo dos curricula letivos.
Um dos primeiros homens a falar publicamente a favor do darwinismo, para além de cristão, era clérigo anglicano: refiro-me a Baden Powell, nomeado professor de Geometria pela Universidade de Oxford, que, na época do debate entre Huxley e Wilberforce que referi acima, escreve palavras encomiásticas para com o A Origem das Espécies de Darwin. Também Charles Kingsley, sacerdote e professor de História Moderna na Universidade de Cambridge, afina pelo diapasão de Powell. Uma das figuras mais interessantes desta lista foi o teólogo de Oxford: Aubrey Moore, que, darwinista e cristão, defendia que a ciência iria agora permitir a Deus participar no nosso modo de ver as coisas, a toda a hora e em todo o lugar, isto é, seria agora possível regressar à visão cristã da intervenção divina direta, à imanência omnipresente do poder divino.
Mas não é só do lado da religião que surgem posições conciliatórias, também do lado da ciência irrompem posições
de harmonização e integração: cito aqui dois dos maiores evolucionistas desde de Darwin: o inglês Ronald Fisher, autor de The Genetical Theory of Natural Selection (1930), e Theodosius Dobzhansky, americano nascido na Rússia, autor de Genetics and the Origin of Species (1937). Ambos os cientistas eram assumidamente cristãos: o primeiro na Igreja Anglicana, o segundo na Igreja Ortodoxa. Para Fisher, se a evolução ainda não terminou, a criação também ainda está a decorrer, ela não cessou há muitos séculos atrás e, se quisermos mesmo articular esse processo com o Génesis, nós estamos ainda no sexto dia, aquele em que Deus ainda não descansou para contemplar a sua obra. Dobzhansky articulará a fé com a ciência de modo muito semelhante. Contudo, à medida que nos vamos aproximando da contemporaneidade a distância entre fé e ciência irá apresentar-se, para alguns autores, como incomensurável ou, em alguns mesmo, insuperável, é o caso de Richard Dawkins (nascido a 26 de março de 1941): biólogo em Oxford, profundamente ateu e duro darwinista. Se Dawkins é o forte defensor do Evolucionismo, encontramos na outra extremidade Phillip E. Johnson (1940-2019) grande adversário dessa corrente e defensor acérrimo do Criacionismo. Todavia, e para além destas posições extremadas, autores existem que argumentam que a ciência e a religião podem coexistir em harmonia, é o caso de Stephen Jay Gould (nascido em Nova Iorque a 10 de setembro de 1941). Gould, paleontólogo que se assume como agnóstico, argumenta que não há oposição entre ciência e religião, já que não há sobreposição entre ambas, pois os seus campos de especialidade profissional são radicalmente distintos: a ciência interessa-se pela constituição empírica do universo, já a religião tem por preocupação a busca de valores éticos corretos e o significado das nossas vidas. Este sentimento de unidade e harmonia é também vivido por outros autores como Keith Ward (nascido a 22 de agosto de 1938), professor de Teologia em Oxford, que defende que a seleção natural é uma teoria fecunda, pois o relato evolucionista e a crença religiosa numa força criativa não só são compatíveis, como se reforçam reciprocamente.
Desenhado que está o pano de fundo da polémica, discorrerei agora sobre a posição de Joseph Ratzinger no que a ele diz respeito.
Assim, e no respeitante ao que tenho vindo a escrever, este autor não se coíbe de colocar a questão: “Mas hoje a nossa pergunta é: na época da ciência e da técnica, ainda tem sentido falar de criação? Como devemos compreender as narrações do Génesis?” (RATZINGER, 2023, p 27). Vemos, por conseguinte, que a problemática da criação se encontra imbrincada com o modo de olhar a narrativa bíblica. A sua posição é bastante clara: a Bíblia não é um manual de ciências naturais, o que ela pretende é compreender a verdade autêntica e profunda da realidade, ou seja, o que o Génesis ambiciona é revelar que o mundo não é um conjunto de forças contrastantes entre si; aquilo a que a Bíblia aspira é revelar que o mundo tem origem no Logos, na Razão eterna de Deus. A partir deste tópico a questão da Criação segue a par da metodologia com que devem ser olhadas as Escrituras: “Portanto, a Escritura diz-nos que a origem do ser, do mundo, a nossa origem não é o irracional, mas a razão, o amor e a liberdade.” (RATZINGER, 2023, p 27). A partir daqui temos de reconhecer que o homem não se fez sozinho; os humanos não são mais do que pó, e é Deus que inspira o sopro de vida nesse corpo modelado de terra, ou seja, nós trazemos em nós esse sopro vital, daí a inviolabilidade da pessoa humana, a sua dignidade, que jamais deve ser entendida através de critérios utilitaristas. Uma vez este ponto assente, o jardim com a árvore do conhecimento do bem e do mal revela-nos tão-só (ou acima de tudo?) que o homem deve reconhecer que o mundo não é propriedade a destruir e a explorar, já que sendo dádiva do Criador, ele é um dom a cultivar e a conservar. Mas Ratzinger não se limita ao modo de ler as Escrituras, ele articula essas narrações com o contexto sócio-cultural ao qual elas se dirigiam e se dirigem, pois da Bíblia ninguém pode obter informações relativas às ciências naturais, já que dela apenas se podem obter conhecimentos relativos à experiência religiosa, então “Tudo o mais não passa de uma imagem e de uma forma de narração com o único objectivo de tornar realidades profundas acessíveis aos seres humanos.” (RATZINGER, 2009, p 19). Urge então distinguir “forma de uma representação” de “conteúdo dessa mesma representação”, e a forma terá sido escolhida num contexto epocal em que podia ser compreendida, uma vez chegados aqui surgem-nos dois outros subtemas: um, só se pretende representar, através dessas imagens, realidades que são perenes, isto é, não interessa demonstrar como as árvores, as estrelas, o sol, etc., foram aparecendo, a intenção é outra: mostrar que Deus criou tudo o que vemos neste Aqui que nos envolve, que tudo procede da Razão de Deus, de um Logos criador pela “Palavra de Deus, que é a mensagem do seu acto criador” (RATZINGER, 2009, p 25); dois, há uma constatação da (e na) Bíblia aparentemente contraditória com o que escrevi anteriormente, é que ela adapta constantemente as suas imagens ao desenvolvimento do pensar que, no tempo, necessariamente vem ao seu encontro; as imagens, portanto, corrigem-se constantemente através dum processo interativo e gradual, e é desse modo que elas nos vão dizendo que não passam de imagens de algo que as ultrapassa. Assim, as narrativas bíblicas relativas à criação são um modo de referência à realidade distinto dos que podemos encontrar na biologia, na astrofísica, na paleontologia, etc., elas não explicam o processo evolutivo do que nos rodeia nem a estrutura matemática da matéria, dizem-nos, isso sim – e de forma diferente -, que há um só Deus e que o universo não é um mero campo onde forças obscuras se digladiam, mas que é Criação do Logos, da Razão e da Palavra de Deus. Contudo, convém acrescentar que as passagens particulares da Bíblia não caiem numa ausência de significado nem que este se encontra limitado ao seu conteúdo: elas representam a verdade segundo o modo próprio dos símbolos – exemplo: a narração bíblica está marcada por números que não reproduzem a estrutura material do universo, mas o plano interno da sua construção, assim encontramos com frequência o 4, o 7, o 10; a expressão “disse Deus” surge 10 vezes na narração da Criação, numa antecipação dos 10 Mandamentos, que se apresentam como o eco dessa mesma Criação, e os exemplos – não arbitrários – são inúmeros, numa tradução que aponta para a linguagem, para o espírito, para a tradução da linguagem do universo, para a lógica com que Deus o criou. Antecipando a posição de Ratzinger posso afiançar que a relação Evolução/ Criacionismo não se apresenta sob a forma de uma oposição: “Ora, espíritos mais pensativos deram-se há muito conta de que não estamos perante uma alternativa. Não podemos dizer criação ou evolução. A fórmula correcta seria criação e evolução, pois estes dois conceitos respondem a duas questões diferentes. A história do pó da terra e do sopro de Deus, que atrás ouvimos, de facto, não explica como as pessoas surgiram, mas antes aquilo que elas são. Explica a sua mais profunda origem e lança uma luz sobre o projecto que elas são. A teoria da evolução procura, por outro lado, compreender e descrever os desenvolvimentos biológicos. Mas, ao fazê-lo, não pode explicar de onde veio o “projecto” das pessoas humanas, nem a sua origem interior, nem a sua natureza particular. Neste sentido, somos aqui confrontados com duas realidades que são complementares – em vez de se excluírem mutuamente.” (RATZINGER, 2009, p 50). Esta posição remete-nos para um outro tema importante no pensamento de Ratzinger, refiro-me à questão da relação Saber/ Ignorância, que, por sua vez, nos assinala um tema fundamental no pensamento deste autor: a Fé. Considerando que esse tema tangencia tudo o que aqui abordei, tomo a liberdade de referir o cuidado com que, segundo Ratzinger, devemos trilhar as sendas do conhecimento: “Obviamente, esta mistura de saber e ignorância, de conhecimento material e profunda incompreensão existe em todos os tempos. Por isso, a palavra de Jesus relativa à ignorância, com as suas aplicações nas diversas situações da Escritura, deve, também hoje, inquietar os pretensos sábios. Porventura não seremos cegos precisamente quando nos consideramos sábios?” (RATZINGER, 2011, p 171).
BIBLIOGRAFIA
Consultar o final do Artigo 1, também neste número da Revista.
Victor Oliveira Mateus