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O abandono estendia-se
pela noite.
Nem um marco, por mais
insignificante
que fosse, te desenhava
uma clareira
alijada nas margens em que
ias tecendo
gentes e terras que só tu
sabias.
Um rumor avançava pelas
fissuras do negro,
uma estranheza que não
decifravas,
estampando nos barrotes do
teto
um clamor de espíritos
antigos,
de náufragos insidiosos
cuja vingança se ia
esboroando
entre a trapeira e as
latas enferrujadas
com craveiros e malvas à
mistura.
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O abandono era o mais
recuado cenário
e dele pendia um cabide,
uma farda
da guerra de 14-18 com
bolor nas bainhas.
Ao lado, entre a
embocadura do sótão
e uma cómoda sufocada de
molduras,
havia também um relógio de
pé alto;
um relógio de mostrador
amarelecido,
com numeração romana
desenhada
a régua e esquadro. Um
relógio
já sem ponteiros nem
pêndulo,
relíquia com a qual
passarias a medir
esse abandono, que não
mais te largaria.
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© Victor Oliveira Mateus.
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