(...) ousarei dizer que os seres humanos os conheço em mim mesma, e que os outros seres - de animais a plantas - é preciso escutá-los, ver-lhes a forma que passa - pêlos, folhas, pedras - e seguir com o texto a sua vida oculta e resplandecente.
Eu não sou uma intelectual, conheço e cultivo o que é necessário à minha vida; se me lembrei de escrever foi porque,
sem esse lado da revelação, eu ficaria sem caminho; caminho sobre a escrita como sobre as águas; e, sem saber porquê, afirmo que da escrita só se pode desaparecer com precauções; um longo rasto de memória perdida me conduz; ainda bem que tenho pouca memória, a que retém conhecimentos já elaborados. Eu sirvo-me das passagens da cultura para atravessar sucessivas grutas onde eu própria ousei penetrar, num dia fechado da humanidade, ou seja, num dia em que tinham fechado a humanidade. Mas foi breve.
(...) Os cheiros da noite trazem-me uma recordação longínqua; são-me indispensáveis para viver.
(...) Sinto-me, outra vez, desamparada e triste. Se não fossem as colchas de renda das janelas para onde olho frequentes vezes, faltar-me-ia ainda mais espaço para continuar a viver com lucidez.
.
.
Llansol, Maria Gabriela. Numerosas Linhas, Livro de Horas III. Porto: Assírio & Alvim, 2013, pp 333-334.
.
.
.