E, na manhã seguinte, estava um rio.
Era um pequeno rio que lutava contra o seu próprio leito, um frágil ser cercado de ameaças, muito veloz no modo de correr e sempre em sítio igual, no mesmo sítio. As margens arenosas inclinavam-se, estranhando a matéria transparente, fugidia e tenaz que as separava, intrometida numa circunstância que era o deserto e a sua soberania. Queriam naturalmente aniquilá-lo, e não somente as margens, mas também a depressão onde ele se desenhava absorvia toda a água que podia.
Mas o pequeno rio porfiava, fabricava os seus próprios aliados, ervas capazes de criar raízes fortes que se agarravam como dedos ao chão solto e o obrigavam a mobilizar-se, depois arbustos que se levantavam e lutavam com a sombra e a frescura contra um excesso de evaporação.
Era uma força concentrada, um solitário que nem rumorejava. O deserto não queria mudar nem mudaria pela intromissão de um corpo estranho. Acontecia entre eles a guerra suave, a guerra controlada. Desgastavam o mais que conseguiam, sem, no entanto, perderem nem cor nem compostura.
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Correia, Hélia. Um bailarino na batalha. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2018, p 47.
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