sábado, 22 de setembro de 2018


Então, Erend tirou o véu que o ocultara e todos perceberam quão belo era e quanto precisavam do seu rosto. A avó pediu: "Não voltes a esconder-te." Envaideciam a criança com os seus modos, e os olhos dele brilhavam cruelmente, de acordo com a sua majestade. Awa pensou que queria igual deferência para o seu próprio filho que se agarrava ao braço esquerdo de Walid e de quem toda a gente se esquecia.
   Erend incorporava toda a esperança que era tão pouca já, defeituosa, prestes a viciar-se nas cedências. Tornar-se-ia indigna antes mesmo de mendigar, a esperança, tornar-se-ia uma dessas criaturas que vivem só das oportunidades e a oportunidade estava toda no alcance dos olhos do rapaz.
(...) Anoitecia, e Erend virou-se para o poente. O que ele viu, todos poderiam ver, porém tinham perdido certos hábitos e confiavam pouco nos sentidos. O sol, ao dissolver-se no horizonte, não mostrava o aspecto habitual. Algo nele embatia e o fragmentava, algo que eles tomaram, a princípio, por um furor de pássaros, que, de facto, se distendia velozmente, evoluindo como um bando em sobressalto.
   Mas eram nuvens. Ondulavam como fumo, com uma rapidez surpreendente, numa força expansiva que parecia gerada dentro delas. A luz do sol, vermelha, emoldurava-as por um instante e debruava, às vezes, com fio de ouro, os brevíssimos contornos. Os caminhantes viam a chegada desse elemento negro e poderoso que, a triunfar, lhes salvaria a vida. E então disseram: "Vamos", ainda que se aproximasse a noite. Seguiriam, não as estrelas, como sempre os homens tinham seguido, mas a sua ausência.
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 Correia, Hélia. Um bailarino na batalha. Lisboa: Relógio D'Água Editores, 2018, pp 94-95.
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