Pré-publicação (Este trabalho, uma tradução de um longuíssimo monólogo oral, não está ainda concluído... terminá-lo-ei em breve.)
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A
CONDIÇÃO FEMININA
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Marguerite Yourcenar
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Bem, a mulher na
nossa época! Primeiro é preciso pensar no que é uma mulher e, creio, que a primeira
nota que tomaremos é que uma mulher é um ser humano, que naquilo que lhe diz
respeito quanto à ordem sexual – o que é, evidentemente, considerável como
domínio!- ela comporta-se e age, biologicamente, como um homem: ela digere, o
seu cérebro funciona, ela anda, ela serve-se das mãos para tomar contacto com
as coisas e trabalhar, serve-se dos pés para andar e o conjunto desta
organização é, num primeiro momento, uma organização humana. É preciso, creio,
nunca esquecer isto, que quando pensamos nas mulheres pensa-se geralmente de
dois modos: ou pensa-se a partir do ponto de vista dos homens, sendo elas então
um grupo distinto; ou pensa-se na reação das mulheres, enquanto reagem contra
os homens e aqui temos mulheres em oposição aos homens. Quando ultrapassamos
estes dois pontos de vista, apercebemo-nos que uma senhora, que compra o
jornal, que telefona para os bombeiros porque dadas instalações precisam de
reparação, quando assina um cheque para pagar as despesas do mês, etc., se
comporta exatamente como um homem o faria nas mesmas circunstâncias; ela é
prisioneira das circunstâncias sociais do mesmo modo e, nesse momento, elas não
se sentem nem mais nem menos mulheres. Lembro-me perfeitamente de me ter
acontecido que certas mulheres quando me entrevistaram perguntaram: quantas
vezes por dia se sentiu mulher e se experienciou a si própria enquanto
mulher?... Claro que quando compramos um vestido – embora também haja calças
para mulheres -, quando compramos sapatos, pois há sapatos diferentes para
homem e para mulher ou quando descemos à cave de um restaurante e está
refletida na porta uma mulher bela, nesse momento, claro, automaticamente e de
modo rotineiro, sentimo-nos mulher, mas nos outros campos, que são as grandes
ocasiões da vida, isso não acontece, e penso que isto é muito importante. Além
disto, há o facto de certas mulheres, sempre ou em algumas épocas da sua vida,
serem muito mais mulheres do que outras, são cem por cento mulheres e outras
são-no muito menos, com vários elementos masculinos, e que outras são cinquenta
por cento masculinas e cinquenta por cento femininas e existem mesmo outras que
possuem aquilo a que nós chamamos uma forte masculinidade, e só isto já daria
um grande debate, o que é isso de ser do tipo masculino?, e não nos esqueçamos,
por exemplo, que quando falamos da condição das mulheres no passado elas
estavam em grande desvantagem ante as leis, o que era verdade, por exemplo,
apareceu recentemente em França um livro que se intitulava “Gabrielle Perreau,
femme adultère” de um certo advogado chamado [Pierre ] Darmon e que conta com grande detalhe, a partir dos Arquivos
da Biblioteca Nacional, a história de uma mulher do século XVIII que passou
quase toda a sua vida na prisão, porque o marido levou à letra a lei que
permitia mandar prender a sua mulher quando esta lhe era infiel, quando lemos
isto, na modalidade habitual do casamento francês pelo registo… pergunto-me
quantos maridos teriam tomado esta decisão, creio que foi algo que existiu mais
na papelada do que na realidade, mas mesmo considerando que as mulheres tenham
conseguido algumas vantagens legais ao longo dos séculos, por exemplo, o
poderem elas próprias fazerem o seu testamento ou organizarem as suas próprias
finanças e tudo isso… mas isso é verdade
só nos papéis. Quando observamos, por exemplo, uma mulher da pequena burguesia
que dirige uma boutique, apercebemo-nos de que é o marido que faz as entregas e
que é ela, encostada ao balcão, que toma todas as decisões, ontem à tarde, eu e
um amigo, trazendo as compras da vila, perguntávamo-nos se era a mulher ou o
marido que dirigia [a
loja] , finalmente,
portanto, há uma grande diferença quando observamos entre o que está imerso e o
que se passa num ponto de vista legal, não nos esquecemos disso, não nos
esquecemos que as mulheres dos séculos XVII e XVI não eram ministras de Estado
nem Presidentes como em Israel ou na India, mas, por outro lado, jogam um papel
formidável na política que fazem os ministros, elas não eram académicas mas
faziam os académicos… quando entrei para a Academia – fui a primeira mulher a
entrar – encarreguei-me da acalmar todos aqueles senhores dizendo-lhes que não
estavam ameaçados, que se seguia apenas a ordem do tempo e que outrora outras
mulheres estiveram muito mais do que agora colocadas num pedestal e que nenhum
tivera a ideia de lhe oferecer uma cadeira na Academia.
O que me inquieta no feminismo de hoje, com
o qual estou sempre de acordo quando se trata de salários iguais para igual
mérito, é evidente, quando se trata da liberdade da mulher no que diz respeito
às funções femininas, como por exemplo a limitação dos nascimentos sob todas as
suas formas, etc., eu estou completamente de acordo com tudo isso,
evidentemente, mas há, contudo, um elemento incómodo: é o elemento da
reivindicação contra o homem, uma tendência para a mulher virar-se contra o
homem, o que não me parece natural, que não me parece necessário e que tende a
estabelecer guetos, de guetos estamos nós já fartos, e quando vejo as mulheres
num estabelecimento para mulheres ou num clube só para mulheres, ou qualquer
outra coisa … ou restaurantes só para mulheres digo-me se não serão de novo os
guetos. O que teria acontecido há trinta anos se nós tivéssemos dito: você não tem o direito de entrar num restaurante para mulheres?, e estamos em vias de
recriar isso, o que é lamentável, é que as coisas só se farão por uma
compreensão e uma simpatia… e uma grande colaboração entre homens e mulheres, e
penso o mesmo para a relação do homem com as outras espécies animais, todos
serão salvos pela simpatia e pela compreensão e pela ausência de ignorância
recíproca… e gostaria de ver as mulheres pensarem numa espécie de fraternidade
humana, em vez de se oporem… um grupo contra o outro, é o que me impede de
aderir, de assinar o meu nome na maioria dos prospetos de grande parte das
organizações feministas.
Não gosto de etiquetas e não gosto daqueles
que separam e reduzem os seres a certas atitudes, penso que uma mulher deveria
ter a liberdade de ser tanto mulher, ou tão pouco mulher, quanto o desejasse,
isso prende-se com outra dificuldade que se coloca na nossa época… um pouco
como em todas as minorias, um pouco como as velhas instituições quando se
regeneram, como a igreja católica relativamente ao comunismo, luta-se a favor
das liberdades que resultavam úteis, talvez mais do que das liberdades que
seriam úteis nesse momento presente. Sabemos bem que há cinquenta anos, ou
duzentos anos, havia épocas em que as mulheres era suposto ficarem fechadas no
interior das suas casas a tratarem só da cozinha, se não tinham meios de ter
uma cozinheira, ou a vigiarem a cozinheira se tivessem uma, mesmo assim elas
sonhavam outras coisas, por exemplo como em Moliére em “Les femmes savantes”
onde as mulheres se deviam ocupar da cozinha e não de ler o dicionário, isso é,
evidentemente, extremamente vexatório, mas na realidade, ainda quando vemos a
realidade da época, apercebemo-nos que frequentemente outra coisa… nos nossos
dias a situação não é tão dramática como a referida, mesmo ao nível da vida
doméstica e o que se produziu, infelizmente, é que muitas mulheres fizeram da
vida masculina o ideal, é uma ideia engraçada já que a vida dos homens não é
tão ideal quanto isso, e sonham ser o equivalente desse senhor que se levanta
às sete e meia da manhã, pega na sua mala, engole o seu café a correr e
precipita-se para o escritório, como ideia de libertação é uma ideia que me
deixa fria… e a ideia de carreira, a ideia de sucesso, do sucesso no domínio,
do sucesso no dinheiro, ser uma administradora que organiza, que tem pessoas ao
seu serviço, sob as suas ordens, tornou-se para a mulher o ideal do sucesso
humano, na minha opinião é uma derrota lamentável para os dois sexos, pois se
um homem também só tem isso para oferecer é bem triste e se uma mulher o imita
e sonha com uma carreira desse tipo ela aperceber-se-á mais tarde que fracassou
em muitas coisas… o importante será estabelecer um novo ideal humano, um ideal
que ofereça aos seres talvez não necessariamente mais ócio, mas mais liberdade
de atividade e de escolhas, mas menos num mundo onde o trabalho se tornou
sacrossanto, se tornou uma forma hipócrita de escravatura, já que as pessoas
não fazem mais nada do que isso, estão obcecadas e quando o abandonam, porque
vão para a reforma, deixam-se morrer ou entregam-se a dados jogos inúteis, ora, em vez
disso seria importante estabelecer uma espécie de igualdade humana na qual nas
horas se partilhasse as tarefas, os trabalhos, os prazeres, simplesmente, em
companhia…. até hoje o feminismo, esse feminismo a cem por cento, não colocou
a tónica nestes aspetos e há ainda outra coisa, há um facto que me deixa
siderada, quando vemos certas revistas femininas e vemos um artigo instigador
na primeira página dizendo que a condição da mulher é atroz e que ela se deverá
erguer a uma condição igual à do homem, sobre isto e sobre aquilo, mas ao
virarmos a página vemos sobre um magnífico papel brilhante uma imagem de
cosméticos, um sutiã, uns sapatos de salto alto e toda uma imensidão de coisas
que pertence ao velho arsenal da mulher objeto, parece que essas mulheres
querem jogar em ambos os lados do tabuleiro, mas ou bem que se é uma mulher com
uma mochila às costas que faz excursões ou que partilha o trabalho doméstico
com o seu marido, seu amigo, o seu irmão
ou quem quer que seja ou é uma senhora coberta de cosméticos e jóias geralmente
pagas por um senhor qualquer, ora as duas coisas não se conjugam e é frequente
ver-se ainda o balançar entre uma atitude e outra um grande número de mulheres,
então, evidentemente, eu não condeno quando quatro homens entre cem e quando
quatro mulheres entre cem falam infalivelmente mal dos homens ou das mulheres e
nos dois casos temos a impressão que são fórmulas abstratas, como as fórmulas
algébricas, quem são esses homens?, quem são essas mulheres?, e que em cada
caso e isso é de novo um mundo psicológico, um mundo da sensibilidade humana
que me incomoda muito, asseguram-nos que os homens não entendem as mulheres e vice-versa, não vejo nenhuma razão para que isso seja verdadeiro, pois de uma
parte e de outra trata-se de seres humanos, mas creio que há de novo uma certa
atitude religiosa que impediu o homem de
se aproximar livremente à imagem animal, certas atitudes de parecer bem, de
conveniência, etc. têm impedido muita coisa, até que ponto os dois sexos podem,
poderão, confraternizar e compreenderem-se sem as rotinas ou as fórmulas de
hoje… e há outra coisa que me choca sempre: é o papel enorme jogado pelo ciúme,
sobretudo na literatura francesa, desde os primeiros romances de amor ou de uma
tragédia de Racine, há duas personagens, um homem e uma mulher apaixonados ou
um que o está e o outro não… parece que a ideia de posse, a hostilidade contra
toda a liberdade que poderá ter o outro joga aqui um papel, ouso dizer, de três
quartos na conceção que a França tem do amor, isto parece-me miserável,
Montherland dizia: o ciúme é um sentimento de primeira… não sei porquê, eu
direi entes que é um sentimento de costureirinha, enfim, um sentimento de
dactilógrafas insignificantes com pouca instrução, mas é certo que esta noção
está completamente arruinada pela questão do tomar posse da parte de um e do
outro que é o ciúme, o homem crendo-se o mestre, o possuidor, e a mulher, no
outro lado, crendo-se absolutamente como possessão do marido e nos dois casos
se se tivesse sido mais maleável ter-se-ia salvo a situação tradicional, talvez
mesmo sem se recorrer ao divórcio, que não passa de um modo de escapar a essa
situação, mas trazendo os seus próprios dramas e problemas sobretudo se há
crianças, como vejo frequentemente acontecer à minha volta, mas essa espécie de
compreensão fraternal, seja isso o que for, entre homem e mulher, manteve-se na
nossa época muito rara, o pior nesta situação é que se criam bloqueios que são
excessivamente difíceis de superar, como por exemplo a mulher construindo em si
essa ideia artificial de um homem como dono, o que nunca o é, como chefe, como
um homem que ama o dinheiro, como o homem que triunfou e que está sempre longe
de o ser.. e dando-se essa imagem como ideal está terrivelmente afastada da
ordem das coisas e, por exemplo, perdeu o sentimento, que certos homens estão
em vias de adquirir, ou então que jamais o perderam, do charme da importância
da vida – não direi doméstica, porque doméstica é uma palavra boba… o que quer
dizer doméstica? – mas, enfim, cozinhar, ordenar as coisas em seu redor,
arranjar-se para que o seu espaço, quando se tem um pequeno apartamento de duas
salas ou se é uma casa na província que terá quarenta, seja muito mais
agradável para viver, enfim, servir-se desse género de trabalhos para embelezar
o mundo nesse pequeno canto onde se está é muito considerável… e relativamente
à cozinha, como diz frequentemente um psicanalista, é uma forma de amor, dar de
comer às pessoas é um modo de dizer que as amamos, exatamente como com os
animais
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© Marguerite Yourcenar.
© Da tradução: Victor Oliveira Mateus.
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