sexta-feira, 26 de outubro de 2018

Pré-publicação (Este trabalho, uma tradução de um longuíssimo monólogo oral, não está ainda concluído... terminá-lo-ei em breve.)
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                                             A CONDIÇÃO FEMININA
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                                                                Marguerite Yourcenar
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  Bem, a mulher na nossa época! Primeiro é preciso pensar no que é uma mulher e, creio, que a primeira nota que tomaremos é que uma mulher é um ser humano, que naquilo que lhe diz respeito quanto à ordem sexual – o que é, evidentemente, considerável como domínio!- ela comporta-se e age, biologicamente, como um homem: ela digere, o seu cérebro funciona, ela anda, ela serve-se das mãos para tomar contacto com as coisas e trabalhar, serve-se dos pés para andar e o conjunto desta organização é, num primeiro momento, uma organização humana. É preciso, creio, nunca esquecer isto, que quando pensamos nas mulheres pensa-se geralmente de dois modos: ou pensa-se a partir do ponto de vista dos homens, sendo elas então um grupo distinto; ou pensa-se na reação das mulheres, enquanto reagem contra os homens e aqui temos mulheres em oposição aos homens. Quando ultrapassamos estes dois pontos de vista, apercebemo-nos que uma senhora, que compra o jornal, que telefona para os bombeiros porque dadas instalações precisam de reparação, quando assina um cheque para pagar as despesas do mês, etc., se comporta exatamente como um homem o faria nas mesmas circunstâncias; ela é prisioneira das circunstâncias sociais do mesmo modo e, nesse momento, elas não se sentem nem mais nem menos mulheres. Lembro-me perfeitamente de me ter acontecido que certas mulheres quando me entrevistaram perguntaram: quantas vezes por dia se sentiu mulher e se experienciou a si própria enquanto mulher?... Claro que quando compramos um vestido – embora também haja calças para mulheres -, quando compramos sapatos, pois há sapatos diferentes para homem e para mulher ou quando descemos à cave de um restaurante e está refletida na porta uma mulher bela, nesse momento, claro, automaticamente e de modo rotineiro, sentimo-nos mulher, mas nos outros campos, que são as grandes ocasiões da vida, isso não acontece, e penso que isto é muito importante. Além disto, há o facto de certas mulheres, sempre ou em algumas épocas da sua vida, serem muito mais mulheres do que outras, são cem por cento mulheres e outras são-no muito menos, com vários elementos masculinos, e que outras são cinquenta por cento masculinas e cinquenta por cento femininas e existem mesmo outras que possuem aquilo a que nós chamamos uma forte masculinidade, e só isto já daria um grande debate, o que é isso de ser do tipo masculino?, e não nos esqueçamos, por exemplo, que quando falamos da condição das mulheres no passado elas estavam em grande desvantagem ante as leis, o que era verdade, por exemplo, apareceu recentemente em França um livro que se intitulava “Gabrielle Perreau, femme adultère” de um certo advogado chamado [Pierre ] Darmon e que conta com grande detalhe, a partir dos Arquivos da Biblioteca Nacional, a história de uma mulher do século XVIII que passou quase toda a sua vida na prisão, porque o marido levou à letra a lei que permitia mandar prender a sua mulher quando esta lhe era infiel, quando lemos isto, na modalidade habitual do casamento francês pelo registo… pergunto-me quantos maridos teriam tomado esta decisão, creio que foi algo que existiu mais na papelada do que na realidade, mas mesmo considerando que as mulheres tenham conseguido algumas vantagens legais ao longo dos séculos, por exemplo, o poderem elas próprias fazerem o seu testamento ou organizarem as suas próprias finanças e tudo isso…  mas isso é verdade só nos papéis. Quando observamos, por exemplo, uma mulher da pequena burguesia que dirige uma boutique, apercebemo-nos de que é o marido que faz as entregas e que é ela, encostada ao balcão, que toma todas as decisões, ontem à tarde, eu e um amigo, trazendo as compras da vila, perguntávamo-nos se era a mulher ou o marido que dirigia [a loja] , finalmente, portanto, há uma grande diferença quando observamos entre o que está imerso e o que se passa num ponto de vista legal, não nos esquecemos disso, não nos esquecemos que as mulheres dos séculos XVII e XVI não eram ministras de Estado nem Presidentes como em Israel ou na India, mas, por outro lado, jogam um papel formidável na política que fazem os ministros, elas não eram académicas mas faziam os académicos… quando entrei para a Academia – fui a primeira mulher a entrar – encarreguei-me da acalmar todos aqueles senhores dizendo-lhes que não estavam ameaçados, que se seguia apenas a ordem do tempo e que outrora outras mulheres estiveram muito mais do que agora colocadas num pedestal e que nenhum tivera a ideia de lhe oferecer uma cadeira na Academia.
   O que me inquieta no feminismo de hoje, com o qual estou sempre de acordo quando se trata de salários iguais para igual mérito, é evidente, quando se trata da liberdade da mulher no que diz respeito às funções femininas, como por exemplo a limitação dos nascimentos sob todas as suas formas, etc., eu estou completamente de acordo com tudo isso, evidentemente, mas há, contudo, um elemento incómodo: é o elemento da reivindicação contra o homem, uma tendência para a mulher virar-se contra o homem, o que não me parece natural, que não me parece necessário e que tende a estabelecer guetos, de guetos estamos nós já fartos, e quando vejo as mulheres num estabelecimento para mulheres ou num clube só para mulheres, ou qualquer outra coisa … ou restaurantes só para mulheres digo-me se não serão de novo os guetos. O que teria acontecido há trinta anos se nós tivéssemos dito: você não tem o direito de entrar num restaurante para mulheres?, e estamos em vias de recriar isso, o que é lamentável, é que as coisas só se farão por uma compreensão e uma simpatia… e uma grande colaboração entre homens e mulheres, e penso o mesmo para a relação do homem com as outras espécies animais, todos serão salvos pela simpatia e pela compreensão e pela ausência de ignorância recíproca… e gostaria de ver as mulheres pensarem numa espécie de fraternidade humana, em vez de se oporem… um grupo contra o outro, é o que me impede de aderir, de assinar o meu nome na maioria dos prospetos de grande parte das organizações feministas.
   Não gosto de etiquetas e não gosto daqueles que separam e reduzem os seres a certas atitudes, penso que uma mulher deveria ter a liberdade de ser tanto mulher, ou tão pouco mulher, quanto o desejasse, isso prende-se com outra dificuldade que se coloca na nossa época… um pouco como em todas as minorias, um pouco como as velhas instituições quando se regeneram, como a igreja católica relativamente ao comunismo, luta-se a favor das liberdades que resultavam úteis, talvez mais do que das liberdades que seriam úteis nesse momento presente. Sabemos bem que há cinquenta anos, ou duzentos anos, havia épocas em que as mulheres era suposto ficarem fechadas no interior das suas casas a tratarem só da cozinha, se não tinham meios de ter uma cozinheira, ou a vigiarem a cozinheira se tivessem uma, mesmo assim elas sonhavam outras coisas, por exemplo como em Moliére em “Les femmes savantes” onde as mulheres se deviam ocupar da cozinha e não de ler o dicionário, isso é, evidentemente, extremamente vexatório, mas na realidade, ainda quando vemos a realidade da época, apercebemo-nos que frequentemente outra coisa… nos nossos dias a situação não é tão dramática como a referida, mesmo ao nível da vida doméstica e o que se produziu, infelizmente, é que muitas mulheres fizeram da vida masculina o ideal, é uma ideia engraçada já que a vida dos homens não é tão ideal quanto isso, e sonham ser o equivalente desse senhor que se levanta às sete e meia da manhã, pega na sua mala, engole o seu café a correr e precipita-se para o escritório, como ideia de libertação é uma ideia que me deixa fria… e a ideia de carreira, a ideia de sucesso, do sucesso no domínio, do sucesso no dinheiro, ser uma administradora que organiza, que tem pessoas ao seu serviço, sob as suas ordens, tornou-se para a mulher o ideal do sucesso humano, na minha opinião é uma derrota lamentável para os dois sexos, pois se um homem também só tem isso para oferecer é bem triste e se uma mulher o imita e sonha com uma carreira desse tipo ela aperceber-se-á mais tarde que fracassou em muitas coisas… o importante será estabelecer um novo ideal humano, um ideal que ofereça aos seres talvez não necessariamente mais ócio, mas mais liberdade de atividade e de escolhas, mas menos num mundo onde o trabalho se tornou sacrossanto, se tornou uma forma hipócrita de escravatura, já que as pessoas não fazem mais nada do que isso, estão obcecadas e quando o abandonam, porque vão para a reforma, deixam-se morrer ou entregam-se a dados jogos inúteis, ora, em vez disso seria importante estabelecer uma espécie de igualdade humana na qual nas horas se partilhasse as tarefas, os trabalhos, os prazeres, simplesmente, em companhia…. até hoje o feminismo, esse feminismo a cem por cento, não colocou a tónica nestes aspetos e há ainda outra coisa, há um facto que me deixa siderada, quando vemos certas revistas femininas e vemos um artigo instigador na primeira página dizendo que a condição da mulher é atroz e que ela se deverá erguer a uma condição igual à do homem, sobre isto e sobre aquilo, mas ao virarmos a página vemos sobre um magnífico papel brilhante uma imagem de cosméticos, um sutiã, uns sapatos de salto alto e toda uma imensidão de coisas que pertence ao velho arsenal da mulher objeto, parece que essas mulheres querem jogar em ambos os lados do tabuleiro, mas ou bem que se é uma mulher com uma mochila às costas que faz excursões ou que partilha o trabalho doméstico com o seu marido,  seu amigo, o seu irmão ou quem quer que seja ou é uma senhora coberta de cosméticos e jóias geralmente pagas por um senhor qualquer, ora as duas coisas não se conjugam e é frequente ver-se ainda o balançar entre uma atitude e outra um grande número de mulheres, então, evidentemente, eu não condeno quando quatro homens entre cem e quando quatro mulheres entre cem falam infalivelmente mal dos homens ou das mulheres e nos dois casos temos a impressão que são fórmulas abstratas, como as fórmulas algébricas, quem são esses homens?, quem são essas mulheres?, e que em cada caso e isso é de novo um mundo psicológico, um mundo da sensibilidade humana que me incomoda muito, asseguram-nos que os homens não entendem as mulheres e vice-versa, não vejo nenhuma razão para que isso seja verdadeiro, pois de uma parte e de outra trata-se de seres humanos, mas creio que há de novo uma certa atitude religiosa que impediu o homem  de se aproximar livremente à imagem animal, certas atitudes de parecer bem, de conveniência, etc. têm impedido muita coisa, até que ponto os dois sexos podem, poderão, confraternizar e compreenderem-se sem as rotinas ou as fórmulas de hoje… e há outra coisa que me choca sempre: é o papel enorme jogado pelo ciúme, sobretudo na literatura francesa, desde os primeiros romances de amor ou de uma tragédia de Racine, há duas personagens, um homem e uma mulher apaixonados ou um que o está e o outro não… parece que a ideia de posse, a hostilidade contra toda a liberdade que poderá ter o outro joga aqui um papel, ouso dizer, de três quartos na conceção que a França tem do amor, isto parece-me miserável, Montherland dizia: o ciúme é um sentimento de primeira… não sei porquê, eu direi entes que é um sentimento de costureirinha, enfim, um sentimento de dactilógrafas insignificantes com pouca instrução, mas é certo que esta noção está completamente arruinada pela questão do tomar posse da parte de um e do outro que é o ciúme, o homem crendo-se o mestre, o possuidor, e a mulher, no outro lado, crendo-se absolutamente como possessão do marido e nos dois casos se se tivesse sido mais maleável ter-se-ia salvo a situação tradicional, talvez mesmo sem se recorrer ao divórcio, que não passa de um modo de escapar a essa situação, mas trazendo os seus próprios dramas e problemas sobretudo se há crianças, como vejo frequentemente acontecer à minha volta, mas essa espécie de compreensão fraternal, seja isso o que for, entre homem e mulher, manteve-se na nossa época muito rara, o pior nesta situação é que se criam bloqueios que são excessivamente difíceis de superar, como por exemplo a mulher construindo em si essa ideia artificial de um homem como dono, o que nunca o é, como chefe, como um homem que ama o dinheiro, como o homem que triunfou e que está sempre longe de o ser.. e dando-se essa imagem como ideal está terrivelmente afastada da ordem das coisas e, por exemplo, perdeu o sentimento, que certos homens estão em vias de adquirir, ou então que jamais o perderam, do charme da importância da vida – não direi doméstica, porque doméstica é uma palavra boba… o que quer dizer doméstica? – mas, enfim, cozinhar, ordenar as coisas em seu redor, arranjar-se para que o seu espaço, quando se tem um pequeno apartamento de duas salas ou se é uma casa na província que terá quarenta, seja muito mais agradável para viver, enfim, servir-se desse género de trabalhos para embelezar o mundo nesse pequeno canto onde se está é muito considerável… e relativamente à cozinha, como diz frequentemente um psicanalista, é uma forma de amor, dar de comer às pessoas é um modo de dizer que as amamos, exatamente como com os animais
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© Marguerite Yourcenar.
© Da tradução: Victor Oliveira Mateus.
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