quarta-feira, 24 de outubro de 2018

PRÉ-PUBLICAÇÃO
.
.
                        VELHICE: MÁSCARAS E UNIVOCIDADE
.
.
                         Eu, uma criança, muito velha, olho ao longe, para
                         além das ondas, em direcção à casa maternal,
                         a terra das migrações,

                                                  Walt Whitman
.
.
    Não é difícil imaginar como o corpo e o rosto podiam permanecer imperscrutáveis nas comunicações, não presenciais, das primeiras décadas do século XX. A ocultação do rosto nas comunicações à distância era assim um comportamento de evitamento que salvaguardava, remetente e destinatário, do pormenor e de uma exposição minuciosa das marcas do tempo. Nestas décadas, o outro longínquo como tal permanecia, bem ao contrário do longínquo-próximo que nos é dado pelas redes sociais, whatsapp e meios similares das primeiras décadas do século XXI. Nesses primeiros decénios do século XX, e neste contexto sociocultural, visava-se o longe pelo telefone modelo castiçal, pertença exclusiva das classes altas ou de certos estabelecimentos comerciais aonde os pobres se deslocavam se acaso precisassem de telefonar, mas também proliferava o correio aéreo e terrestre onde a língua do remetente passada a preceito no verso da estampilha e da pestana do sobrescrito dava os últimos retoques para a eficácia da comunicação. Estes eram os modelos comunicacionais predominantes, que, contudo, não excluíam outros provindos do século anterior como os adstritos à columbofilia, ao morse, etc., que ainda hoje se mantém em círculos muito específicos. Alguns destes meios de comunicação, ao longo do tempo e em Portugal, sofreram derivações, como, por exemplo, os aerogramas tão usados aquando da guerra colonial, todavia, o que podemos enfatizar é que estávamos sempre perante a ocultação do rosto, só acidentalmente desvelado em fotografias a preto e branco que esporadicamente se enviavam a destinatários perfeitamente identificados.
   Acompanhar o processo de envelhecimento do outro ausente mantinha-se assim conduta ingente e quase sempre de resultados gorados. Todavia, se não se pode acompanhar um dado processo no mesmo, isso não obstaculiza a apreensão de uma ou outra dada etapa, do seu produto final e da inquietação sobre o tema com a consequente reflexão em torno do mesmo, aliás, na esteira do que sempre tinha sido efetivado desde a Antiguidade.
   Em 1970, Simone de Beauvoir publicaria o seu La vieillese (Ed. Gallimard), que segundo palavras da filósofa se destinava a produzir na reflexão em torno do mundo dos idosos o mesmo efeito que o Le deuxième sexe (Ed. Gallimard, 1949) havia produzido no universo feminino. O livro em questão, organiza-se em duas grandes secções: como a sociedade encara a velhice e como as famílias e os vários filósofos a têm visto, mas também a vida através do olhar de um cidadão idoso, isto é, as condições socioculturais que rodeiam a velhice: pobreza, marginalização, negligência, anonimato. Esta obra, que visa dar-nos o sentido unívoco do que é a velhice, dá-nos acima de tudo, com a máxima exigência, todo um conjunto de máscaras com que ela se nos tem apresentado: máscaras sociais, económicas, culturais e políticas. Em entrevista televisiva posterior, Beauvoir confirmará que envelhecer é muitas coisas ao mesmo tempo: uma degenerescência de órgãos, uma diminuição ou anulação de funções biológicas e cognitivas, uma condenação à falta de trabalho e consequente quebra no nível de vida e mesmo à rotulagem de pária e empecilho, como o testemunha o escabroso epíteto posto a circular por um jovem ligado a uma governação de triste memória, que apelidou os reformados de peste grisalha. Pela altura desta entrevista de Beauvoir, Sartre concede também outra, onde, acidentalmente, refere a sua situação de velho, aqui o filósofo regressa ao capítulo dedicado ao Regard do L’être et le néant , bem como à conceção de Inferno esparsa por todo a sua obra dramática, diz ele que a apreensão de si enquanto idoso é uma apreensão mediatizada e não imediata nem espontânea, que é quando vai a uma manifestação e ouve alguém dizer: deixem passar o velho, que é aí que ele se perceciona enquanto velho, por conseguinte, a velhice são os outros. Torna-se aqui claro o hiato entre as duas abordagens do mesmo tema, quer quanto ao afunilar de cariz essencialista, quer quanto à abrangência visando particularidades.
  Na entrevista já referida, e sempre com a preocupação de demonstrar o quanto a contemporaneidade subverteu o valor ser velho, Beauvoir afirma que o hoje se opõe aos mitos, onde os velhos se consideravam sábios, veneráveis e respeitáveis, esta tese parece, no entanto, não confirmada pela estrutura dos próprios mitos greco-latinos, onde até Cronos devora cinco dos seus seis filhos e Zeus se vinga do próprio pai agrilhoando-o nos mundos subterrâneos, aliás, o próprio Hesíodo não se esquece de referir Poseidón e Zeus como distribuidores de bens e males aos homens (Cf. Los trabajos y los dias, Aguilar, 1973, pp 63-64). Se na estrutura do mito o velho não tem um estatuto e um papel unívocos, o mesmo sucede em toda a literatura da Antiguidade, pois, se em Homero, circula o ancião Príamo, semelhante aos deuses (Ilíada, XXIV: 372) e aqui podemos encontrar o velho integro, cioso da honra, da dignidade e do culto dos mortos (Ilíada, XXIV: 322-691), se em Sófocles se nos defronta um velho integro mas sofredor e injustiçado (Cf. Filoctetes, Cotovia, 2006, p 27, pp 44-45; a opção por exemplificar com este texto não tem a ver apenas com a sua qualidade, mas também com o magistral desempenho que Luís Miguel Sintra teve desta personagem, no então Teatro da Cornucópia), o que é um facto é que também podemos achar, em toda esta literatura, o velho imbecilizado, ridículo e digno de escárnio (Cf, Aristófanes, As Nuvens, 1984: 140-165, 475-519). As máscaras da velhice são, por conseguinte, múltiplas, quer na obra de Beauvoir quer nos exemplos da Antiguidade para que ela remete, não existem, nem numa nem em outros, uma preocupação de tipo ontológico, que intente determinar a nível substancial o que é isso de velhice, que nos diga de forma unívoca o que se oculta por baixo desse conceito, preocupação não muito diferente a que percorre um outro continuum, paralelo, que se reporta de Cícero aos nossos dias.
   Em Catão-O-Velho ou Da Velhice (Sociedade Editora Livros de Bolso, 2009), Cícero apresenta-nos um diálogo entre Catão, Cipião e Lélio, onde o primeiro irá refutar as quatro grandes falhas atribuídas à velhice: que afasta os homens dos negócios, que enfraquece o corpo, que suprime os prazeres da vida e que se encontra perto da morte. Logo no início da obra Catão estabelece a tese de que a velhice não é, para o sábio, um mal, já que se deve seguir o curso natural da vida. Esta aceitação do inevitável como veículo para a serenidade e o respeito pela ordem da natureza, princípios fundamentais do Estoicismo, atravessam toda esta obra: “(…) nós, que seguimos a natureza, o melhor dos guias, e a ela obedecemos como a um deus, somos realmente sábios.” (Cícero 2.5) e será a partir deste postulado que o filósofo demonstra que a velhice não é um mal. Quanto ao afastamento dos negócios, este argumento é desmontado com vários exemplos (Cícero 6.15-8.26), já que nada impede um velho de ser um excelente senador, um magistrado justo, um bom aconselhador de agricultores e tantas outras ocupações e negócios; relativamente à relação da velhice com o enfraquecimento do corpo, diz Catão: “Voltando a mim, - estou com oitenta e quatro anos(…) certamente já não possuo aquela força física dos tempos quando era militar (…) e, contudo, como vedes, não me sinto enfraquecido ou abatido devido à velhice (…) tenho menos força do que cada um de vós. Mas, vós não tendes a força do centurião Tito Pôncio; e será ele mais excelente por isso?” (Cícero 9.27-10.33), através de um processo de relativização demonstra-se que a falta de vigor não tem uma relação necessária com a velhice nem com a excelência, mas antes com a saúde e a sua falta, já que a debilidade tanto ataca velhos quanto jovens; no que diz respeito à relação velhice-prazeres (Cícero 12.39-18.65), Catão esmiuça os vários tipos de prazeres, alguns deles tão prejudiciais ao corpo quanto ao cultivo da virtude, por conseguinte, por que não há de sentir um velho mais prazer na reflexão e na observação da natureza do que um jovem na voluptuosidade e nos festins?; por fim, a quarta falha atribuída à velhice: o facto de ela estar perto da morte (Cícero 18.66-23.85) e aqui o autor é claro, pois a morte encontra-se perto de todas as idades: “Tem a juventude, muito mais do que a nossa idade, ocasiões para morrer: as doenças grassam mais facilmente entre os jovens…” (Cícero 19.67). Cícero trilha depois o caminho anunciado por Platão na Apologia e no Fedon : “depois da morte, ou não existe sensação ou, se existe, ela é agradável” (Cícero 20.74). Vemos, neste livro, que, embora não se determinando a univocidade do que é isso de velhice, e dela apresentando-se as mais diversificadas máscaras, apesar disso, ela não é um mal, mas antes um estado intrinsecamente ligado à acalmação dos sentidos, ao cultivo da razão e da virtude e, por fim, ao seguimento e respeito pela ordem da natureza. Este não encontrar uma definição, à boa maneira socrático-platónica, do que é a velhice em-si, mas antes a sua caraterização por vetores que a desvelam numa positividade multifacetada, ou seja, como fase da existência intimamente ligada à acalmação, ao saber, à virtude, à serenidade, será, então, este modelo de abordagem que se irá impor às reflexões subsequentes. Assim, Séneca criticando os que esbanjam o tempo que lhes é dado viver, ao contrário dos que nele refletem e aceitam a ordem da natureza e entendem a vida como uma preparação para a morte, diz que para os primeiros a vida é sempre curta, enquanto que para os segundos ela é um tempo suficiente, e Séneca conclui: “Os velhos fracos pedem mais anos de vida; fingem ser mais novos do que de facto são; confortam-se com este engano e enganam-se (…) Mas quando, por fim, alguma doença lhes recorda a sua mortalidade, morrem aterrorizados como se não estivessem apenas a deixar a vida, mas a serem arrancados a ela (…) Mas aqueles cuja vida não está envolvida em nenhum negócio vivem longamente. Não desbarataram a sua vida, não a desperdiçaram aqui e ali (…) Assim, por curta que seja, é plenamente suficiente e, portanto, sempre que o seu derradeiro dia chega, o homem sensato não hesitará em receber a morte com um passo firme.” (In Da brevidade da vida, Coisas de Ler, p 23). Séneca insiste, por conseguinte, na tese de que a razão arranca todos os vícios e que para aquele que a cultiva não há desterro possível nem temor que o amedronte, seja este o da pobreza, o da velhice ou o da morte: “Se não considerares o teu último dia como castigo mas como uma lei da natureza, quando tiveres lançado do teu coração o temor da morte, não entrará em ti qualquer terror” (In Consolação para Helvia, Coisas de Ler, p 59).
   Vemos ainda que para o entendimento do que é a velhice em-si de pouco nos servem os contributos gerontológicos, sempre tão úteis na sua aplicabilidade prática, mas com as habituais falhas ao nível da delimitação de etapas e seus elementos constitutivos, bem como as compreensíveis incapacidades dos conhecimentos provindos da geriatria, todavia, os contributos vindos de um universo outro que o das ciências, como temos visto, também não deixam de se nos apresentar sempre com seus jogos de incompletude e refrações, pelo que poderemos aferir algumas conclusões intermédias: ao contrário da reduzida variabilidade etária das outras fases da vida (infância, puberdade, etc.) na propalada velhice essa variabilidade pode chegar às dezenas de anos; ao contrário do caráter fixista das mutações biofisiológicas (maturação das estruturas cognitivas, alterações no tipo de pensamento, maturação de dados sistemas como por exemplo o endócrino, etc.) que ocorrem nas outras fases da vida, na velhice nada nos garante que surjam processos demenciais, incapacidades físicas ou momentos de mendicidade afetiva e económica. Há, pois, uma abissal falha entre o olhar que se debruça sobre a velhice procurando-lhe a sua univocidade e aquele outro que identifica e esquematiza as outras fases da vida! Dela poderemos, e num regresso aos Estóicos, dizer tão-só e serenamente: “ Tudo está em transformação, tu mesmo és uma mudança constante e, em certo sentido, uma dissolução; é assim para o mundo inteiro.” (Marco Aurélio IX: 19), ou ainda: “ É ridículo e estranho todo aquele que se surpreende com um acontecimento da vida!” (Marco Aurélio XII:13). Contudo, esta aceitação serena da velhice não é apanágio do hoje ocidental, onde o culto do aparente e do vistoso, bem como a hipervalorização da juventude estabelecem cânones e engrossam mercados nas mais variadas áreas socioculturais, que nem sequer deixam de fora as mais diversas artes como o cinema e a apresentação pública do poeta. A civilização ocidental é, hoje, uma civilização assustada, que, entregue à ganância - para usar o termo de Peter Singer - e ao torvelinho do quotidiano, projeta nas gerações que a procederam os temores que o vazio que foi edificando não consegue superar. Nestes mecanismos de projeção e pânico certos epifenómenos mereceriam um estudo social e psicanalítico mais aprofundado, como por exemplo a associação velhice/lar de idosos (aliás, a própria análise da linguagem é reveladora de frustrações e mecanismos defensivos, pois como fuga ao medo sempre surgem novos conceitos: idoso, terceira idade, quarta idade, personas maiores , etc.), mas na associação acima referida não ocorre um estudo comparativo entre os residentes dos ditos lares e os milhares de crianças e jovens que vagabundeiam, adoecem e morrem em países asiáticos, africanos e da América latina. E eis-nos assim regressados aos quatro argumentos da obra de Cícero referida no início desse ensaio!
      A impossibilidade de fixar num mero conceito ou numa única representação geral e abstrata de cariz científico esse estado, ou processo, comummente conhecido por velhice, visto a singularidade invadir toda a tentativa de generalização e o particular irromper aqui e ali e, com suas intrusões e variáveis não esperadas, recorda-nos o que um reputado psiquiatra e sexólogo disse acerca da problemática da orientação sexual, referiu ele, numa das suas crónicas, que não existe heterossexualidade nem homossexualidade, mas sim heterossexualidades e homossexualidades, assim, por abuso e paráfrase, poder-se-á também dizer que não existe velhice, mas velhices, velhos que aqui ali se poderão assemelhar, mas que também se podem distinguir (até ao nível da relação idade/ processos degenerativos) segundo os mais diversificados contextos e experiências vividas. É, portanto, a relação de afinidade que induz os processos de rotulagem e categorização, já que a velhice não tem um sentido unívoco, não passa do célebre flatus vocis à boa maneira do nominalismo de semelhança defendido por Guilherme de Occam: “ (…) o universal é um sinal, nada mais. O nominalismo de Occam consiste em manter esta posição, sem desfalecimento.(…) Occam nega essas essências (…) Este mestre de Oxford vê muito bem que pôr uma realidade equivale a pôr um indivíduo…” ( In A Filosofia na Idade Média de Paulo Vignaux. Coimbra: Arménio Amado Editor, 1959, p 195).
   Esta recusa do universal e a omnipresença invasora do particular, se, por um lado apaga a essência daquilo de que se fala, por outro, não impede o acesso a conhecimentos e a aplicações práticas, do mesmo modo, aliás, que em Occam o singular podia sempre gerar no intelecto conhecimento. E este balancear do fenoménico e da sua cognoscibilidade é particularmente patente no modo como os diversos indivíduos vivenciam a sua própria velhice e a do outro – vejam-se dois exemplos radicalmente distintos: Montaigne, referindo que o modo como encaramos os bens e os males depende da opinião que deles temos (Essais: I:XIV), cita o que o poeta latino Albio Tibulo diz dos sofrimentos de dadas mulheres para parecerem mais novas, pois “Elas têm o cuidado de arrancar pela raiz todos os seus cabelos brancos e de reconstruirem um rosto novo removendo a pele envelhecida” (Elegias I:VIII), ora, se os romanos praticavam já a cirurgia estética e esta tinha empenhadas seguidoras, passados largos séculos não há ainda uma posição universal sobre tal modo de iludir o envelhecimento, como se pode ver numa entrevista – existente no youtube - que a romancista, poeta e atriz Rosa Lobato de Faria concedeu, diz a escritora acerca das operações plásticas, com aquela habitual sensibilidade com que costumava olhar o real e que depois punha nas palavras quando dele falava: “(…) tenho pensado bastante no assunto e de repente fiquei com medo que a minha cara, depois de uma plástica, perdesse algumas expressões que eu acho que só se tem no último terço da vida, uma delas é a da ternura infinita que eu só vejo nos olhos dos mais velhos.” Também a volatilidade das datações e das periodizações enfatiza a irrupção do particular, como já referimos, no que se pretendia positivo e unívoco e um dos casos mais interessantes foi o do próprio Montaigne que em 1570, com 38 anos e julgando-se velho, se entrincheira na sua torre para refletir, distanciar-se da realidade e escrever a sua obra, contudo, quando “chegou o ano de 1580. Durante dez anos esteve na sua torre, isolado do mundo e acreditou que acabaria assim. Agora reconhece o seu erro e Montaigne sempre reconhece os seus erros. O primeiro deles foi julgar-se velho aos trinta e oito anos, preparar-se para a morte demasiado cedo e, de facto, ter-se enterrado vivo. Tem quarenta e oito anos e, com surpresa, constata que os seus sentidos não estão fragilizados, pelo contrário, estão mais vigorosos, o pensamento mais esclarecido, a alma igualmente tranquila, mas mais ávida, mais corajosa, mais impaciente.” (In Montaigne de Stefan Zweig. Porto: Assírio & Alvim, 2016, p 70) e o filósofo dedica, então, o tempo que se segue a viajar, qual “homem de quarenta e oito anos, que brinca sempre com a velhice, tem mais vitalidade do que os jovens (…) chega ao seu castelo a 30 de novembro de 1581, mais jovem, com o espírito mais vigoroso e mais sagaz do que nunca. Dois anos depois nasce o último dos seus filhos.” (Cf. Stefan Zweig, Op. Cit. pp 79-81), após esta viagem, e como assinalava a obra de Cícero referida no início, Montaigne ainda é solicitado para esse árduo negócio que é conciliar o último dos Valois (Henrique III) com as pretensões ao trono do primeiro Bourbon (Henrique de Navarra, futuro Henrique IV). Sempre jogando à cabra-cega com a velhice será ainda pouco antes de morrer que Marie de Gournay, pouco mais velha do que a sua filha mais nova, se apaixonará por este homem através da sua obra.
   O remover-se uma definição, positiva e universal, de velhice das diversas áreas de cariz científico pelo que nela circula de aleatoriedade, coincide com a incapacidade da antropologia filosófica em estabelecer, como temos vindo a ver, um objetivo semelhante. O mesmo sucedendo com quaisquer experiências ao nível do senso comum das quais salientamos duas: a) quando perguntámos a uma turma do 7º ano quem era a professora de inglês (pergunta direcionada e tendenciosa, já que houve o cuidado em escolher alguém rondando os quarenta anos e demasiado negligé ), a resposta foi precisa: era uma velha que costumava andar vestida deste e daquele modo, quando depois pegámos na resposta obtida e, na hora seguinte, expusemos a situação a uma turma do 12º ano, cujas idades oscilavam entre os 17 e os 22 anos, toda a turma se riu da ingenuidade dos colegas mais novos; b) quando um familiar de 21 anos, durante um jantar de amigos, deixa sair: “É que o meu primo tem a idade da minha avó paterna, mas a minha avó é velha… acho que foi sempre velha, só que o meu primo não é velho, não consigo vê-lo como velho.” E eis-nos, portanto, atirados para afirmação de Sartre, para a mediação do olhar na coisificação dessa etapa da vida vulgarmente apelidada de velhice. Vemos, por conseguinte, e regressando a Montaigne, que o espírito apreende estímulos e perceções segundo a medida que melhor lhe parece, devendo afastar-se sempre, para bem ajuizar, da ansiedade, da impaciência e da violência do desejo (Essais 3:X), até porque um mesmo acontecimento, como é aqui o caso da velhice, tem muitas facetas, e estas a uns podem suscitar indiferença ou riso, enquanto que a outros podem trazer dor e lágrimas (Essais 1:XXXVIII) e não é sem alguma ironia que Montaigne – muito antes das mortes nos campos de refugiados, por afogamento no Mediterrâneo, nas guerras e atentados de diversos tipos, nas pandemias por novas batérias cada vez mais resistentes, no tédio dos possidentes, nas overdoses, na fome extrema, etc., muito antes disto tudo, mas num tempo onde os níveis de mortalidade na infância, na juventude e na maturidade eram enormes – não é sem ironia, dizíamos, que ele afirma que a morte motivada pela falta de forças trazida pela velhice é a mais rara de todas e a que menos se usa (Essais 1:LVII) e reforça: “Morrer de velhice é uma morte rara, singular, extraordinária e muito menos natural que os outros tipos de morte” (Essais 1:LVII). E eis-nos, de novo, regressados à obra de Cícero referida no início deste texto, bem como aos nossos noticiários onde os estropiados, os fugitivos, os degolados, raramente são velhos. Vendo bem, e à guisa de conclusão, viemos à vida para representar um papel, depende de nós apenas representá-lo bem ou mal, mas qual o tipo de papel e se ele será de curta ou de longa duração isso escarpar-nos-á sempre (Cf.  Manuel d’Épictète de Arrien, 17). Esta tese de Epicteto aparecerá depois, recorrentemente, ao longo da cultura ocidental, embora com outras formulações, como se pode ver em La vida es sueño de Calderon de Labarca e em A tia Tula de Miguel de Unamuno.
   Impossibilitados de, a nível ontológico, apreendermos uma determinação categorizadora de tudo o que nos vários entes pulula e dá pelo nome de velhice, impossibilitados igualmente de encontrar um enunciado suficientemente claro e distinto, que aglutine e explique os diversos processos de degenerescência e/ou envelhecimento, resta-nos a farmacodinâmica tradicional, as terapias mais ou menos inovadoras como, por exemplo, a da dança estimulando atividades neuronais e físicas e restam-nos os objetivos a impor a si próprio que a tradição literária e filosófica, em cuidadas práticas e observações, deixou esparsa por inúmeras obras, podemos mesmo concluir este texto com uma das inúmeras máscaras da velhice, um olhar singular que uma dessas velhices individuais, sem dramatismos nem esconjuros, lançou sobre si própria: “A velhice ajuda a superar muitas coisas. Quando um homem idoso abana a cabeça ou murmura algumas palavras, uns vêm nisso a expressão de uma sabedoria esclarecida, outros um sintoma do envelhecimento. Quanto a saber se a sua relação com o mundo deriva da sua experiência, da sabedoria que ele foi adquirindo ou apenas dos problemas circulatórios de que ele padece, isso permanece um mistério, até para o próprio velho.// É somente envelhecendo que nos apercebemos que a beleza é rara, que compreendemos o milagre que constitui o desabrochar de uma flor no meio das ruínas, a persistência das obras literárias através dos montões de jornais e de extratos bancários.” ( In Éloge de la vieillesse de Hermann Hesse. Paris: Calman-Lévy, 2018, pp 71-72).
.
.
 ©  VICTOR OLIVEIRA MATEUS
.
.
.