segunda-feira, 31 de dezembro de 2018


 Manual de instruções para fabrico de abraços a dois

Escolher o lugar a gosto,
uma sala cheia de janelas, a luz cortada por cortinas,
um disco a tocar canções ao piano no gira-discos,
um pouco de verde com odor a tílias,
a relva acabada de cortar,
a terra molhada de uma chuva de Verão,
um passeio largo
para não incomodar os transeuntes mais apressados.
Evitar dias de chuva, gabardinas, guarda-chuvas,
evitar as mãos dentro dos bolsos
como pássaros que nunca voaram do ninho,
evitar chapéus de pala e de aba,
camisolas ásperas de lã, luvas e cachecóis também.
Colocar os dois corpos frente a frente,
dar um passo, dois passos, três passos,
perceber uma orquestra
a tocar uma valsa em compasso ternário,
sendo que o mais provável é haver pelo menos um
que não sabe dançar.
Reduzir a distância, o vazio, o abismo, entre os corpos,
se necessário compensar desníveis de altura
com a elevação de um dos corpos em bicos de pés,
e com os braços
fazer um laço como se o outro corpo
um presente a embrulhar.
Por fim, um fim que é o princípio de tudo,
se confortável, se com vontade,
pousar a cabeça no ombro do outro corpo,
no peito do outro corpo,
sentir como respira,
se também bate acelerado o outro coração,
desfazer os bicos dos pés e ficar,
sem perceber que o tempo inexoravelmente passa,
em regra, de olhos fechados.
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 Martins, Raquel Serejo. Os invencíveis. S/c.: Poética Edições, 2018, pp 114-115.
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