quarta-feira, 26 de dezembro de 2018


(Texto de Graça Pires, lido pela autora na Livraria Férin em novembro de 2018, como apresentação do livro Aquilo que não tem nome ).
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   Ao ler este título do Victor Oliveira Mateus ocorreu-me Ana Hatherly no seu verso: escrevo para dizer o que não pode ser dito.
   Porque este título é muito mais que um título. Encerra um pressuposto simbólico e real que, no dizer do autor, é o pedaço desse mistério para lá da morte e da vida (p 48). Encerra também a invenção de uma intimidade partilhada com os leitores através da palavra. Palavra, reveladora, libertadora, destruidora por vezes. Encerra ainda a ideia de uma causa vazia que podemos abranger até onde o limite o permitir. Como disse o filósofo da China antiga, Lao Tsé (604-517 A.C.) um vaso só é útil pelo vazio que tem dentro.
   Cada poema deste livro pode parecer-nos uma janela escancarada ou a fresta estreita que se entreabre a desvendar um rosto, um corpo, umas mãos, uma voz, ou uma paisagem iluminada por emoções.
   Dividido em três partes: Rito matinal, Poemas de amor e morte, Negro com azul ao fundo, o livro do Victor traz-nos uma poesia onde encontramos mistério, melancolia, amor, perda, sarcasmo.
   É uma poesia que muda de voz, que incorpora registos discursivos diferentes, que vão do dizer narrativo, à expressão lírica, ao concreto das coisas, ao tempo interior da memória, à elaboração de conceitos, à citação erudita, à invocação de algo que nos excede.
   De notar que quase todos os poemas permitem adivinhar a existência de um interlocutor que pode ser Deus e o Amor que não são traduzíveis por nenhuma imagem, que transcendem qualquer designação ou, como é referido na p 14:  (...) um deus, uma presença à qual, à falta de nome, amor chamássemos como se chama um pássaro, uma barca antes do fim, uma nova benfazeja que designasse em força o que não tem termo nem limite. Esse interlocutor pode ser também o desejo, a ausência: Depois de ti/ todas as ruas ficaram vazias/ e as casas entregaram-se, à humidade de um tempo sem destino (p 27), ou: agora que aqui não estás, deixa que o tempo afague este mármore sob o qual te vieste esconder (p 19). E pode ser a morte: Abro a janela e lá estás de novo/ na sisudez das paredes em frente (...) E vem-me também um cheiro a fim, um adejar negro nesta aparição (p 43). Podem ser os outros, porque é quando o poeta entra dentro de si próprio que melhor consegue ver os outros e encontra aquilo que é comum a todos: Afagas a mesa com tuas mãos de terra, mãos nodosas, habituadas à delicada tarefa das raízes (p 12). Pode ser também uma prece como no poema Invocação da p 34: (...) alivia-me deste presente/ que posso tornear e do peso de um passado/ que não posso corrigir. É como se estes interlocutores subvertessem os monólogos, inerentes à poesia mais intimista, ao encher-se de vozes que se interpelam e nos interpelam.
   Nos poemas do Victor percebe-se uma imagética ligada ao sobrenatural, aos lugares, às coisas, ao tudo e ao nada onde os olhos do poeta se detiveram e se perturbaram e se maravilharam, como se quisesse fazer uma síntese daquilo que o seu olhar é capaz de ver ou de intuir.
   As palavras são como um cristal, escreveu Eugénio de Andrade, realçando o seu carácter multifacetado: são de água, são de sede, são de fogo, tecem os textos que se cruzam e se entrelaçam entre si, a mesclarem a vivência dos dias com um mundo conhecido ou reconhecido através da reflexão, porque estes poemas, estou certa, vieram de algum lugar onde, como refere Maria Zambrano, se albergam os sentimentos indecifráveis, que saltam por cima daquilo que pode ser explicado.
   Permito-me dizer que o signo estruturador é o Azul, explícita ou implicitamente. O azul inicial, o azul seco, o azul luminoso, o azul jónico, o azul do céu e do mar, algo que, no dizer do poeta, nos leva a erguer o rosto para o alto, para a vastidão de uma serenidade azul que não cesse de (te) nos chamar (p 13). O poeta ajusta o azul ao ritmo dos poemas. Integra-o. Dá-lhe protagonismo, nesta poesia que é, ao mesmo tempo, pensamento, criação e imagem.
   Sabemos por Steiner que a linguagem do poema tem a capacidade de dizer muito mais do que ela significa, de significar muito mais do que diz. É assim com este livro que, desde as primeiras páginas, nos revela uma escrita de serenidade aparente, mas acabamos por descobrir que é uma escrita de sobressalto, que nos questiona, como se, na sua singularidade poética, cada palavra nos reservasse uma cilada...
   E, a propósito deste Azul, a cor da distância e da nostalgia, do amor e da mágoa, lembro Clarice Lispector: O inalcançável é sempre azul.
     Já no seu livro Quando Voltares o Victor escreveu: Azul do horizonte, de linha que o infinito indica - o indizível.
   Victor Oliveira Mateus consegue transfigurar as palavras numa cosmologia muito pessoal, como se a poesia fosse para ele a presença quase invisível de um rumor de palavras e silêncios que o levam a entender a vida humana como uma possibilidade do Universo ou de Deus.
   A última parte do livro, significativamente chamada Negro com azul ao fundo, tem um poema que reforça o que acabei de dizer. Por isso repito com o poeta: (...) De mim ficarão os escritos que irão truncar/ ou esconder no negrume dos novos templos,/ as suspeitas em torno do meu corpo/ perto do qual ninguém viram, nem poderiam/ ver. Ficará tudo o que quiserem infamar/ com os dejetos que lhes sobram das almas,/ tudo menos esse azul onde diariamente vivi,/ um azul jónico e luminosos, avesso ao negro/ que me impunham, mas que até ao fim recusei. (p 58).
   Parabéns Victor por este teu livro e por esta inesgotável fidelidade a todo um azul/ celeste (p 47), mesmo sabendo que qualquer palavra que se escreve pode parecer inquieta, mesmo a palavra Azul.
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Graça Pires (Lisboa, Livraria Férin, 10 de novembro de 2018.
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