terça-feira, 26 de fevereiro de 2019


                         Ítaca

E quem é que nunca esteve em Ítaca?
Quem não conhece a sua austera paisagem,
o anel de mar que a cerca,
a rude intimidade que nos impõe,
o elevado silêncio que nos descreve?
Ítaca resume-nos como um livro,
conduz-nos a nós próprios,
descobre-nos o som da espera.
Porque a espera tem som:
conserva o eco das vozes que já partiram.
Ítaca denuncia o sopro da vida,
faz-nos cúmplices da distância,
vigias cegos de uma senda
que se vai fazendo sem nós,
que não poderemos esquecer, porque
não há esquecimento do que se desconhece.
É doloroso despertar um dia
e contemplar um mar que nos abraça,
que nos unge de sal e batiza como filhos recém chegados,
Recordamos, então, os dias do vinho partilhado,
as palavras, não o eco;
as mãos, não o gesto diluído.
Vejo o mar que me cerca,
o vago azul por onde te perdeste,
confirmo o horizonte com avidez extenuada,
concedo aos olhos um momento
para cumprir a delicada tarefa;
depois, volto as costas
e dirijo os meus passos para Ítaca.
.
.
   Aguirre, Francisca. Detrás de los espejos, Antología 1973-2010. Madrid: Bartleby Editores, 2013, pp 17-18 (Tradução de Victor Oliveira Mateus).
.
.
.