quinta-feira, 7 de março de 2019


          Filosofia de um alcoólico

                            Diálogo com a própria sombra.
                            Noite de primavera.

Vós sabeis o que é o mundo?
Respondam todos à uma -
Os ignorantes e os sábios:
O mundo é um disparate
Em que os homens são cativos!
E esta vida? O que é a vida?
Sendo o mundo um disparate,
os vivos não podem ser
Senão disparates vivos!
Que tal? Fui ou não fui genial?
Eu quando as digo sem cuspo
É porque tenho razão...
Estavas aí? Nem te via!
O quê? Sei lá que horas são!
Não é noite nem é dia;
É um intervalo suspenso
Na ponte da fantasia!
Endireita-te! Não podes?
Fala de frente! Já sei.
Embebedei-me? E depois?
O vinho dá lucidez -
E um homem com vinho é rei!
Quando se bebe há centenas
De visões no coração,
Vê-se a vida de outra cor
- Vermelha, quente, sadia,
Você está ouvindo ou não?
Tudo tem um outro encanto
E até a miséria sabe
A um bem-estar, a fartura,
As mãos dão palmas, há risos,
Estamos sempre de acordo
Se em nós for grande a grossura
Beber um copo de vinho
Num momento de amargura,
Pegar num copo com linha,
Sabê-lo chegar aos lábios
- Eu disse lábios? São beiços!
Ficamos indiferentes
Por maior que a mágoa seja!
O vinho enfraquece e apaga
O sentimento da inveja;
Só ele nos dá firmeza
Para estarmos resignados
A ver tombar as Nações
E esses milhões de soldados
Que se esfacelam, p'ra quê?
Para haver mais liberdade?
Falaste? Agora bebia,
Bebia um copo, e você?
Falta o melhor? O dinheiro?
Esse poderoso absurdo,
Vadio, pantomineiro?
Mas fala! Tens medo? Eu sei:
Não é medo, é cobardia!
Tá bem! Pronto. Falo eu.
E seja o que Deus quiser!
Tá bem. Falo eu. Bom dia!
Solteiro; não tenho casa;
Não há filhos nem mulher...
Beber! Que grande prazer!
Nas largas horas difíceis
Chega-lhe um copo e verás
Se o vinho não é o alento
Mais forte da humanidade!
E o que é que ela quer, enfim,
A humanidade, eu, você,
Aquele, o outro, e outro mais,
Todos quantos se atropelam
Serenos ou convulsivos
Nesta feira miserável
De tantos cadáveres vivos?
Voltas-me a cara, porquê?
Sou maluco, sou um parvo?...
Um parvo és tu! Todo aquele
Que não discute e não mostra
Que sabe, que "sim", que entende
Mais que o vizinho do lado,
Ó filho!, é um tipo tramado!
Só o silêncio destrói
A nossa capacidade
Em sermos luta constante!
Quem fala mostra que mexe
Ou p'ra trás ou p'ra diante!
Mas fica para aí sem alma,
Fica para aí pasmaceira,
Que eu cá vou dizendo ao mundo
O que é verdade e o que penso
Através da bebedeira!...
.
.
  Botto, António. Poesia. Porto: Assírio & Alvim, 2018, pp 435-437.
.
.
.