quinta-feira, 4 de abril de 2019



A acerba ironia subjacente à ficção de Woolf é que, embora ela tivesse embarcado na desconstrução do Eu para provar que não passamos de um "segmento de escuridão" fugaz, na verdade descobriu a teimosa realidade do Eu. De facto, quanto mais investigava a experiência, mais necessário o Eu se tornava para ela. Se há algo que sabemos é que estamos aqui, a viver isto. O tempo passa e as sensações vão e vêm, Mas nós ficamos.
As personagens de Woolf reflectem a sua fé frágil no Eu. Nos seus romances tudo é visto através do prisma subjectivo de um indivíduo. (...) Independentemente  do grau de modernidade que a prosa de Woolf tenha atingido, o Eu falacioso - aquela essência inexplicável que faz com que nós sejamos nós próprios e não outra pessoa - recusava desaparecer. "Não bani a alma quando comecei?" pergunta-se Woolf no seu diário. "O que acontece, como sempre, é que a vida me toma de assalto."
Na sua arte, Woolf deixou-se assaltar pela vida. Ela mostra-nos as nossas partes fugazes, mas também nos mostra como elas se unem. O segredo, apercebeu-se Woolf, é que o Eu emerge da sua fonte. Emergir é a palavra crucial aqui. (...) Na sua ficção, o Eu não é imposto nem repudiado. Pelo contrário, ergue-se simplesmente, como uma visão roubada à correnteza.
Mas como é que o Eu se ergue? Como é que emergimos continuamente das nossas sensações, dos "bocados, sobras e fragmentos" que constituem a mente?
Woolf apercebeu-se de que o Eu emerge através da atenção. Ligamos as nossas partes sensoriais, sentindo-as partir de um ponto de vista particular. Durante este processo, algumas sensações são ignoradas enquanto outras são destacadas. O mundo exterior é cabalmente interpretado.
(...) Mas como é que nós perduramos? Como é que o Eu transcende a separação dos seus momentos de atenção? Como é que o processo se transforma em nós? Para Woolf, a resposta era simples: O Eu é uma ilusão, Esta era a sua visão final do Eu. Embora tivesse começado por tentar derrubar a entediante noção de consciência do século XIX, que tratava o Eu como "uma peça de mobiliário", acabou por perceber que o Eu realmente existia, quanto mais não fosse como um ardil da mente.(...) O Eu é simplesmente a nossa obra de arte, uma ficção criada pelo cérebro para poder retirar sentido da sua própria desunião (...)
A neurociência moderna está agora a confirmar o Eu em que Woolf acreditava. Inventamo-nos a partir das nossas próprias sensações. Como Woolf previu, este processo é controlado pela atenção, que transforma as nossas partes sensoriais num momento concentrado de consciência. O eu ficcional - uma entidade nebulosa que ninguém consegue encontrar - é o que une estes momentos separados. (...) De facto, a nossa consciência parece exigir um Eu perspicaz desta natureza: só tomamos consciência da sensação depois de ter sido seleccionada. Como Woolf dizia, o Eu é "a nossa ostra central da percepção".
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 Lehrer, Jonah. Proust era um neurocientista, como a arte antecipa a ciência. Alfragide: Lua de papel, 2009, pp 210-214.
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