quarta-feira, 3 de abril de 2019


   A neurociência sabe agora que Proust estava certo. Rachel Herz, uma psicóloga em Brown, demonstrou - num ensaio científico inteligentemente intitulado Testing the Proustian Hypothesis -que os nossos sentidos do olfacto e do paladar são singularmente sentimentais. Isto passa-se porque o olfacto e o paladar são os únicos sentidos que se ligam directamente ao hipocampo, o centro da memória de longo prazo do cérebro. A sua marca é indelével. Todos os nossos outros sentidos (visão, tacto e audição) passam primeiro pelo tálamo, a origem da linguagem e a porta da consciência. Em resultado disto, estes sentidos são muito menos eficientes quando se trata de convocar o nosso passado.
   Proust pressentiu esta anatomia. Usou o sabor da madalena e o aroma do chá para invocar a sua infância. Olhar apenas para o bolo recortado não lembrava nada. Proust, para começar, vai mesmo ao ponto de culpar a sua visão por obscurecer as memórias de infância. "Talvez porque, tendo-as visto (as madalenas) muitas vezes depois disso sem as comer", escreve Proust, "a sua imagem deixara aqueles dias de Combray". Felizmente para a literatura, Proust decidiu pôr o bolo na boca.
   Claro que mal Proust começou a lembrar-se do seu passado, perdeu qualquer interesse pelo sabor da madalena. (...) Proust abraçou estas estranhas associações precisamente porque não as conseguia explicar. Compreendeu que a idiossincrasia era a essência da personalidade. Apenas com a revisão meticulosa da teia das nossas ligações neurais - por mais absurdas que essas ligações possam ser - poderemos compreender-nos, porque nós somos a nossa teia. Proust respigou toda esta sabedoria de um chá vespertino.
   Portanto, há o tempo e há a memória. A ficção de Proust, que é principalmente não ficção, explora a forma como o tempo muda a memória.(...)
   Estas questões estão no âmago da teoria de Proust sobre a memória. Dito simplesmente, ele acreditava que as nossas lembranças eram falsas. Embora parecessem reais, eram na realidade invenções complexas. (...) Ajustamos os factos para se adequarem à nossa história, porque "a nossas inteligência reescreve a experiência". Proust previne-nos para tratarmos a realidade das nossas memórias cuidadosamente e com algum cepticismo.(...) Dado que todas as memórias estão repletas de erros, não é preciso seguir-lhes o rasto.
   A estranha reviravolta da história é que a ciência está a descobrir a verdade molecular subjacente a estas teorias proustianas. A memória é passível de falhar. A nossa lembrança das coisas do passado é imperfeita.
.
.
 Lehrer, Jonah. Proust era um neurocientista, como a arte antecipa a ciência. Alfragide: Lua de papel, 2009, pp 102-104.
.
.
.